O calão luandense em Lisboa - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O calão luandense em Lisboa
Usos trazidos de Angola

Actualmente, uma das novilínguas mais faladas na Grande Lisboa é o «luandês», desenvolvido nos últimos cinco anos com a exportação maciça de jovens de Luanda. Dia a dia surgem novos termos, reflexo de pura imaginação e exibicionismo.

Grande parte do grupo falante desse calão foge ao trabalho, fazendo-o apenas para sobrevivência, amontoa-se em apartamentos, vive de noite e ultimamente viciou-se a beber cerveja em garrafas grandes nas ruas, urinando constantemente. É um grupo com um grande poder territorial, impondo-se pelo número e pelo alarido. Casos houve, a que eu assisti, em que obrigam portugueses a mudar de passeio.

Exibicionista por natureza, o grupo criou novas expressões do seu calão em Portugal. Quando os novos «exportados» chegam a Portugal costumam ter grande dificuldade em compreender os «legalizados».

Quase não se exprimem em português vulgar, utilizando-o para ligação sintáctica entre as expressões do calão. Estão fechados em guetos e são avessos a qualquer integração. Com uma excepção: procuram, na vida nocturna, raparigas loiras, que depois exibem como namoradas. Uma grande parte dá-se bem com os polícias, que tratam afavelmente, com cumprimentos e abraços, «enrolando-os» com a sua linguagem sempre que há algum problema, e recorrem sempre à defesa de carácter racial quando se vêem em apuros. É muito frequente ouvir-se dizer: «Se eu fosse branco o senhor não me dizia isso!». Muitos polícias têm medo desses grupos e, sempre que há um desacato, não os enfrentam.

Têm uma moda própria, dos pés à cabeça, cópia adulterada dos negros norte-americanos. Gostam de rapar o cabelo e usar botas muito grossas, pretas ou de cor.

Nunca falam com pessoas estranhas. Entre si apenas falam de pessoas das suas relações, contando histórias, em voz muito alta, para toda a gente se aperceber da sua presença. Nunca falam das paisagens, nunca tecem críticas a situações, a não ser quando os afectam directamente. Para eles tudo está bem, desde que o grupo se mantenha coeso («Não tem problema!», é uma das expressões mais ouvidas, que também pode variar para «Não tem kijila!» - «kijila» é um tabu, uma proibição. Por exemplo, em algumas regiões de Angola um peixe de rio chamado bagre é kijila, não pode ser comido).

Foram facilmente legalizados, recorrendo a «esquemas» a troco de dinheiro, o que lhes permite obter toda a documentação necessária (o BI português «com processo» custa 600 contos, «sem processo» custa 200 contos. O BI angolano, esse, custa na Damaia, falsificado por um zairense, a módica quantia de 10 contos, sendo muito utilizado para requerer asilo político em alguns países europeus).

Um exemplo de actuação de um grupo de jovens lumpens luandenses, no Cacém. Ia a passar um casal, ele branco, ela negra, e uma filha muito jovem. O grupo estava reunido num jardim e imediatamente começou a insultar o marido: «Seu branco de merda, seu pula, deixa a negra, seu cabrão!». Ele enfrentou-os mas foi ainda mais insultado com muito calão à mistura e chegou a ser espancado.

 

Alguns termos de luandês

 

Avilo — Amigo.

Banda —  Luanda. (Um dos termos mais usados pelo lumpen luandense em Portugal. «Vou na banda», «Venho da banda».)

Basar - Fugir, ir embora. («Ele basou!», «Vou basar!»)

Bué — Muito. («Lá tem bué de garinas», «Tem bué de pulas». É incorrecto usar a palavra "bué" como se está a generalizar entre os jovens portugueses urbanos: «Ela é bué linda», «Ele é bué pobre». Na verdadeira acepção corresponde ao francês «beaucoup de...».)

Coche (ó) - Bocado. (Não se sabe de onde vem esta expressão. «Dormi um coche», «Fica mais um coche». Utiliza-se também o diminutivo «cochito» (ó). «Ele só bebeu um cochito de vinho»,)

Cubico — Quarto. («Vou no cubico», «Vou basar no cubico».)

Dama — Amante. (Quando se trata de mulher casada é sempre esposa: «Como está a esposa do kota?» =«Como está a esposa do mais velho? Nunca dizem «como está a mulher do senhor», no sentido de «esposa»).

Diampunas — Cuecas.

Garina  — Rapariga, namorada. («A minha garina curte uma nice».)

Horas - Tal como em Luanda, o sistema de horas é diferente do português. Depois do meio-dia não dizem «uma», mas sim «treze», «catorze», «quinze», etc. Se se combinar com um elemento deste grupo qualquer coisa para as «duas», ele aparece de madrugada.

Malaiko — Doido.  («O teu avilo está malaiko».)

Garina  —Rapariga, namorada.  («A minha garina curte uma nice»)

Malaiko —Doido. («O teu avilo está malaiko».)

Mauanzas — Óculos.

Muadié - Mais velho. («O muadié basou no seu ruca» (Nota: esta palavra vem de língua quimbundo.)

Nice - Boa.  («Estou numa nice!»)

Pula - Português, no sentido de branco. Termo pejorativo, muito usado quando um grupo de jovens negros luandenses se quer meter com portugueses, ou para os insultar.

Ruca  — Carro.

Xulé - Saúde. «Como está o teu xulé?» («Como está a tua saúde?»)

 Ya! — Sim! Termo muitíssimo usado, sempre que dois jovens se encontram. «Ya, meu! Ya!». Quando não têm nada para dizer, usam esta expressão até à exaustão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre o autor

Jornalista angolano (Luanda, 1945 — Lisboa, 2024). Em Portugal, trabalhou no semanário Expresso durante 10 anos, com colaborações regulares, também, na TSFBBC e Rádio France, além de ter chefiado durante algum tempo o boletim em português África Confidencial. Regressado a Luanda, após uma passagem pelo jornal digital Nova Gazeta, passou a integrar os quadros redatoriais do Jornal de Angola, desde 2013, exercendo funções diversificadas: revisor, articulista, formador de colegas mais novos: ultimamente, assinava semanalmente textos na muito apreciada página “Caminhos da Vida”, com relatos, experiências e histórias de superação de pessoas mais desfavorecidas. Paralelamente, distinguiu-se ainda na dinamização de perto de 150 bibliotecas distribuídas graciosamente pelo interior mais recôndito do seu país¹. Profundo conhecedor da realidade sociolinguística angolana, foi durante largos anos um dedicado consultor do Ciberdúvidas sobre essa temática. Mais informação aquiaqui, aqui e aqui.

¹ Um livro, uma criança, muitos hospitais

 

 Cf. Rui Ramos (1945 — 2024)