Língua remendada - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Língua remendada
Língua remendada
«Pelo pouco que lhe que [os] seus naturais»

E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura.

Para falar, é engraçada, com um modo senhoril; para cantar, é suave, com um certo sentimento que favorece a música; para pregar , é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas, nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias, nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias.

A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência do gargalo.

Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala.

Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da latina, a origem da grega, a familiaridade da castelhana, a brandura da francesa, a elegância da italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé de sua antiguidade. E, se à língua hebreia, pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta, quanto a nossa. E, para que diga tudo, um só mal tem, e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte!

 

CfImitação e Retórica  em  Corte  na  Aldeia

Fonte

Extrato de Corte na Aldeia, de Franciso Rodrigues Lobo (1580 — 1621) em louvor da língua portuguesa e contra «o pouco que lhe querem [os] seu naturais, a trazerem mais remendada que capa de pedinte» 

Sobre o autor

Francisco Rodrigues Lobo (Leiria, 1580 – Lisboa, 1621), poeta português, formado em Direito na Universidade de Coimbra. Viveu na Dinastia Filipina, daí as suas obras escritas maioritariamente em castelhano. Corte na Aldeia* (1619) é considerada o primeiro sinal literário do Barroco em Portugal. Das suas obras, destacam-se A Primavera (1601), O Pastor Peregrino (1608) e Condestabre de Portugal (1609).

 

* Cf. Imitação e Retórica  em  Corte  na  Aldeia