Nós prezamos tão pouco a nossa língua,
Que tão sómente as outras aprendemos,
Em desar da nativa; e a ser-nos dado,
Na francesa escrevêramos, faláramos,
Como já na espanhola, por lisonja
E por louca vaidade, compusemos!
[...]
Falemos português brando e sonoro
A portugueses que entender-nos cabe.
E se espertos me argúem os peraltas
Que as riquezas vocais que assim pretendo
Introduzir, empecem à clareza
Da língua, e que o vulgar dos portugueses
Não pode súbito abranger o senso
Das vozes clássicas, remotas do uso,
Das novas, das latinas, das compostas,
Mui pachorrento e concho lhes respondo
Que as que hoje estão em uso foram novas,
Tão difíceis então, quanto estas hoje
De serem do vulgar bem entendidas.
Quando o Pombal nas leis punha apanágio
Ninguém soube que enxalmo, que encomenda
Que bicharoco era apanágio. Os mesmos
Letrados se tomavam da tarântula.
Apanágio passou. Hoje é corrente.
Qual foi o sapateiro ou curraleira
Que pescou o sentido enrevesado
Em retactar, controverter, em outras,
Da vez primeira que saiu da boca
Do freguês que lha disse?... Pouco a pouco,
Explicada, prègada, conversada,
Conseguiu ser palavra corriqueira
Quem d’antes era enigma avesso, abstruso.
Tal é o fado das primeiras vozes:
Estranham – vão entrando – tomam posse –
Depois ficam de assento – e entre nós casam...
Ei-las parentas já de toda a língua.
Assim é que um caminho de pé posto
Co´o andar da gente passa a ser estrada.
Como em límpida fonte, em nossos mestres
E nas páginas férteis dos Latinos
Tomem linguagem puro os bons engenhos
Que a colher palmas de eloquência lusa
Inclinam seu propósito e porfia...1
[...]
Quando, órfão dos bons clássicos, o idioma
Se viu ao desamparo, ao desalinho
De um tropel de ignorantes, todo o rico,
Custoso cabedal, que tinha herdado
Da ânsia de estudo de escritores sábios,
Se esvaiu pelas mãos de ruins tutores.
Um, fastioso de após, desfez-se dele;
Este espancou quiçé, esse outro asinha;
E assim os mais. Foi roupa de Franceses...
Os termos mais enérgicos, mais curtos,
Os mais sonoros, por melindre ou birra,
Foram longe da língua degredados;
E outros foram perdidos por desleixo,
E nós, de avitos bens herdeiros lídimos,
Num património entrámos defraudado
De ouro, padrões, alfaias nu e cru.
[...]
Demos que ressuscite (o que hoje é fácil)
Vieira, e ouça falar certos peraltas,
Pregoeiros de afrancesada língua.
Parece-me que o vejo franzir beiços,
Encrespar o nariz, preguntar logo:
– Quem vos torceu as falas à francesa,
Meus pardais novos de amarelo bico?
PERALTA
Lemos livros de fita, e é nesses livros
Que nós puisamos o falar à moda,
No mais charmante tom, mais seduisante.
VIEIRA
E quem trouxe essa moda, meus meninos?
PERALTA
Ele é, pois que exigis que com justeza
Raporte o renomado chefe, é êsse o
Tradutor de Telémaco,
De sermões vicentinos precedido,
Avan-coorrores desta nova escola.
[...]
VIEIRA
Pare, pare, senhor, coo sarrabulho
Dessa frase franduna! Eu fui a França,
Nunca lá me atolei nesses lameiros,
Nunca enroupei a língua portuguesa
Com trapos multicolores, gandaiados
Nessa feira da ladra. Os meus latinos
Me deram sempre o precioso traje
Com que aformosentei a lusa fala...
Com Deus fique, senhor. Tal gíria esconsa,
De ensosso mistifório burdalengo,
Só medra co´ êsses tolos que se enfronham
Em língua estranha sem saber a sua,
E dão co´essa mistura a vera efígie
Do apupado, ridículo enxacoco2!
1 O pensamento de Francisco Manuel do Nascimento parece ter sido êste: Em matéria de boa linguagem devemos inovar com prudência e discernimento, evitando tanto os barbarismos como os latinismos pedantescos, e procurando tirar do esquecimento os vocábulos expressivos da nossa língua de outrora, que ainda mais facilmente reentrarão no quadro do falar moderno do que nele se naturalizam e radicam tantas palavras exóticas desnecessárias.
2 Enxacoco = o que fala mal a língua estrangeira, misturando-lhe palavras da sua.
Da Arte Poética, Parnaso Lusitano [1826] in Paladinos da Linguagem, Vol. I, Paris-Lisboa, Aillaud & Bertrand, 1921, pp. 135-141.