À volta da desbunda e das oenegês - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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À volta da desbunda e das oenegês

Surpreendo-me discorrendo sobre alguns mitos emergentes na sociedade angolana, sem rumo certo e em desfrute de lentos vagares, mas logo me deixo enlear por coisas de somenos, pequenas dúvidas, questões teóricas. Será que esses mitos, sobre os quais me debruço, existem mesmo antes de serem nomeados, ou apenas passaram a existir por terem sido nomeados?

No entanto, seja qual for o risco, não é grande o perigo. Não é suposto que a revelação dos nomes desses mitos possa ter quaisquer efeitos moralizadores sobre a nossa sociedade, ou o efeito de exorcismar máhambas, espíritos malfazejos, que lhes acompanham. Até, porque, convenhamos, afinal um mito é um mito, e nessa tautologia se explica a sua inocuidade, e consequentemente se garante o sossego dos mais timoratos.

Mas serão mesmo os mitos inocentes! Decididamente. Para me convencer disso, basta-me recorrer a dois dos mais fecundos discursos que se exprimem entre nós, e que imanam dos seus respectivos mitos, toantes ou destoantes, mas que me parecem fortemente marcados pelo tempo que vivemos.

Ocorrem-me, pois, aqueles que nos são mais familiares, e que porventura não serão tão emergentes assim, e nos quais mergulhámos sem que deles nos apercebamos. O mito da desbunda, e o mito das oenegês.

Reconheço que os neologismos que deles necessariamente terão que ocorrer, poderiam ferir alguns ouvidos menos habituados a expressões vernáculas, se na língua portuguesa que falamos [em Angola] não houvesse a tradição de uma tão longa quanto extensa lista de aquisições linguísticas. Além disso, há outro factor que me tranquiliza. Esses neologismos facilmente se identificam com a nossa normalidade.

Creio mesmo que, relativamente à Desbunda, não se tratará propriamente de uma palavra nova. Ela é até corrente em certas circunstâncias de fala mais livre, mas tinha uma origem chula, e cabe-me a mim (permitam-me a falta de modéstia) a sua promoção a conceito adrede a salões de gente séria e bem pensante, e a um novo mito da cultura angolana.

O problema inicial residirá, porventura, na descrição do mito da Desbunda, cuja forma é essencial, já que "...o mito não pode ser de modo nenhum um objecto, um conceito ou um ideia; é um modo de significação, uma forma.". (Barthes, R. – "Mitologias")

Acresce mesmo para justificar a dificuldade, que essa forma me parece derivada de uma metáfora gramatical, em que o termo quimbundo, mbunda, (nádegas, traseiro, rabo, segundo A. de Assis Júnior), passaria a ficar quase subliminarmente ligado a Kubúnda, étimo da mesma origem, que significa saquear, despojar, segundo o mesmo dicionarista. A usura desse mito reconhece-se pelo arbitrário da sua significação, umas vezes ligada ao prazer desordenado, e outras vezes ao saque, interpenetrando-se e criando um sentido ambíguo, que é a sua proposta mais perigosa.

Evidente que, se estas minhas presunções forem correctas, facilmente se achará a forma ideal para a representação da Desbunda nas mentes, já que a Desbunda (que, por razões óbvias, esteve sempremente associada ao mutungo feminil) é um fenómeno nacional de amplas repercussões, que todas as formas de arte enaltecem. Sendo assim, não será exagerado afirmar, que ela faz parte da nossa mitologia erótica, ao qual se lhe associou de abuso, o despojamento, o saque, comportamentos que por força da perigosa aliciação da bunda se exerce sobre a sociedade.

Permitam-me que faça notar, caso ainda não o tenham percebido, da seriedade com que procuro um sentido para o mito da Desbunda, a despeito da ligeireza do tom, que aliás, me parece o mais adequado. Um maior rigor na sua enunciação, certamente não seria o mais conveniente, pois que a tarefa requer inventiva, inconciliável com uma postura demasiado séria. Atrevo-me mesmo a concluir que dessa contradição porventura se deduzirá a sua verdadeira essência. Aliás, como significação, seria bem mais fácil atender a fala literária que lhe está subjacente, que, como se sabe, paira em domínios por vezes enevoados, e é por isso mesmo, muito menos rigorosa. Ela é sugestiva de alusões ao cumenga-menga das ancas das damas, remexe-mexe que perturba os pensamentos de gente séria, e lhes impele a prosseguir desígnios pecaminosos, e pelos quais se sacrificam os valores morais, levando-lhes ao saque e a toda a forma de desmandos. Como aqui se observa, essa fala embora possa parecer mais insinuante, enferma de demasiado subjectivismo. Será, por isso, que o mito e o conceito que decorre do termo Desbunda se confundem, e se manifesta através da inefável angolanidade com que se desbunda, perdão, com que se adopta uma conduta, que se caracteriza por um pendor entranhadamente epicurista, para empregar uma linguagem mais civilizada.

Ao contrário da Desbunda, a linguagem que o mito das Oenegês transporta consigo transparece na diversidade de signos que nos rodeiam. Ele é o resultado associativo do efeito sonoro da abreviatura ONG(s), verdadeiro ideograma das Organizações Não-Governamentais, e do que elas equivalem aos olhos da população; entidades doadoras de géneros alimentícios, roupas, alojamentos, instrumentos de trabalho, medicamentos, e outras ajudas materiais.

Não me admiraria que à vista dos signos que as divulgam – cartazes, emblemas, bandeirinhas, viaturas com as portas pintadas de letras, aviões cargueiros com ou sem distintivos, ou mesmo a visão de louras cabeleiras – se desencadeiem alguns actos reflexos, salivações, e outras secreções dificilmente reprimidas, que na maioria se exprimem timidamente, ou vão além de alguns olhares de cobiça, ou de desespero. É claro, que essas reacções dependem da geografia social onde eles actuam, e amadurecem. Essas imagens pertencem ao nosso quotidiano, mas elas também já fazem parte do nosso património documental, como se pode observar na curta-metragem realizada por Mariano Bartolomeu, a pedido da FAO, e filmada em Malange, no último cenário de guerra, em que os olhos da população se fixavam nos céus, não à espera de auxílio divino, mas procurando lobrigar no voo alto das aves, os aviões cargueiros do PAM, auscultando os sons da Natureza, como se de repente as ONG(s) a ela se substituíssem. E o mito vai-se enraizando com o habitual espectáculo mediático das cerimónias das entregas dos donativos, rituais que se repetem, e parecem ter uma função natural, como as que se relacionam com os ciclos naturais da vida dos homens e da natureza.

Um estudo da criação das ONG(s) [em Angola], onde actualmente há mais de 300, com a cronologia paralela das situações políticas e sociais em que elas nasceram, permitiram conhecer melhor da génese e evolução do Oénegismo, que é o conceito constitutivo do mito, e da forma como se expandiu. Nenhum mito, entre nós, está mais fortemente datado, nem historicamente tão comprometido. E nem sempre de maneira positiva (...)

 

Fonte

Título adaptado por Ciberdúvidas de um artigo publicado na "Sonangol Revista", 1997.

Sobre o autor

Arnaldo Santos (Luanda, 1935) é escritor angolano cujas obras passam pela poesia Fuga (1960), Poemas no Tempo (1977), pelos contos e novelas Quinaxixe (1965), A Boneca de Quilengues (1991), pela crónica Tempo de Munhungo (1968) e pelo romance A Casa Velha das Margens (1999). Exerceu, no entanto, outras atividades profissionais, nomeadamente a de colaborador em revistas como a Cultura, ABC e Mensagem. Após a independência de Angola fundou, juntamente com outros escritores, a União dos Escritores Angolanos.