[...] Mas a poesia é também a língua. A música secreta da língua. Na língua portuguesa essa música é um marulhar contínuo. «Há só mar no meu país» — escreveu o poeta Afonso Duarte. E um poeta angolano falou da língua portuguesa como língua de viagem e mestiçagem. E eu acrescento: rio de muitos rios. E também pátria de várias pátrias. A língua é una. Mas é diversa. Tanto mais ela quanto mais diferente. Tanto mais pura quanto mais impura.
Tanto mais rica quanto menos castiça e mais mestiça. Sem esquecer que houve o português de múltiplas tiranias e de várias resistências. O português da opressão colonial e o português da luta de libertação nacional.
Estranha contradição e, ao mesmo tempo, soberbo privilégio de uma língua que, tendo sido a do sistema colonial, foi também a língua em que os povos começaram a procurar, a pensar e a dizer as suas identidades. Nos poemas, nas revistas, nos textos fundadores, mais tarde na luta de libertação e finalmente na proclamação da independência.
Língua de luta e poesia. Angola independente já estava nos poemas e nos textos em que Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Mário de Andrade e outros afirmaram a sua angolanidade e proclamaram: «Vamos redescobrir Angola, vamos voltar às raízes.» E o mesmo aconteceu em Moçambique com os poemas de José Craveirinha e os discursos de Samora Machel. E também em São Tomé e Príncipe com a poesia de Alda Espírito Santo. E na Guiné-Bissau e Cabo Verde com a escrita dos seus poetas e os textos ideológicos e políticos de Amílcar Cabral. E finalmente em Timor, onde as armas e a poesia andaram juntas.
E que Brasil mais brasileiro do que o que vem de Castro Alves a João Cabral de Melo Neto, passando por Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, sem esquecer a prosa de Machado de Assis, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Lígia Fagundes Teles? Recorde-se que já no século XIX Almeida Garrett tinha escrito uma ode em que saudava a independência do Brasil, sublinhando que ela acrescentava "a lusa liberdade".
Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Bernardo Soares, escreveu: «A minha pátria é a língua portuguesa.» A língua em que Portugal existiu sempre e em que os seus poetas cantaram a liberdade mesmo quando o povo português era também um povo oprimido. Língua da liberdade resgatada pela revolução dos cravos a 25 de Abril de 1974. Eis a língua cuja literatura vai ser objecto de estudo na nova cátedra agora inaugurada nesta tão antiga e livre universidade.
«Cada língua — como escreveu George Steiner — é um acto de liberdade que permite a sobrevivência do homem.» É certo que hoje os novos oráculos não estão em Delfos. Estão nas bolsas e nos mercados. Mas a fonte de Castália não secou. A escrita poética preserva o sagrado e é uma forma de resistência contra o grande mercado do mundo e a degradação da vida.
Hoje, como sempre, poesia é liberdade.
Parte do discurso proferido na inauguração da Cátedra Manuel Alegre na Universidade de Pádua (19-04-2010)