Quem conheceu a casa de Tom Jobim no Jardim Botânico, no Rio, nos anos 1980 e 90, não conseguia deixar de se surpreender. Na estante da sua sala, poucos livros sobre música. Mas, ocupando as prateleiras, tomando a tampa do piano e empilhando-se sobre poltronas, alguns livros de poesia – e muitos dicionários. Dezenas de dicionários, em várias línguas e de todos os géneros: analógico, etimológico, de sinónimos, folclore, pássaros, tupi-guarani, gíria brasileira, gíria americana.
Fazia sentido. As notas musicais, que Tom usava para trabalhar, ele já trazia todas na cabeça. Não precisava tê-las impressas para saber como soavam. Mas as palavras, a sua grande paixão, não podiam ficar soltas pela casa. O lugar delas era dentro dos livros, em forma de poemas, ou dos dicionários, como exércitos de reserva, de plantão para o combate, para a esgrima das ideias. As palavras dominavam também boa parte das conversas de Tom em mesa de bar. E não importava muito o interlocutor. Na verdade, era como se ele dialogasse com elas, mais do que com a pessoa à sua frente.
Uma de suas fixações eram as palavras que começavam com al, denotando a presença árabe na Península Ibérica e, daí, entre nós no Brasil. «Alarido, alaúde, alazão, albornoz, Albuquerque, alcachofra, alcaçuz, alcaide, alcaparra, alcateia, alcatifa...», ele as ia desfiando, até que algum engraçadinho – o que era invariável – o interrompesse, citando o gangster Al Capone. Ele ria. Acho até que desfiava o rosário de "als" para provocar a menção a Al Capone – e, se era assim, não fui o único a morder a isca.
Para quem gosta das palavras, a leitura de um dicionário etimológico pode ser tão emocionante quanto a de um romance de capa-e-espada. Aliás, os quid pro quos são parecidos: a língua também comporta a luta de classes, a sobrevivência das espécies, manobras económicas, trocas comerciais, invasões estrangeiras, correrias, perseguições, fugas. A diferença é que, em vez de damas de peruca empoada e heróis mascarados, os protagonistas são as palavras. Há palavras que entram na língua disfarçadas e pela janela; outras que desaparecem e são esquecidas, e, um dia, são encontradas mortas num sebo de livros. E há ainda outras que surgem de repente, brilham por um momento nos salões, e também acabam abandonadas. Os dicionários contam, em pílulas, tudo que aconteceu na língua.
Eles nos ensinam também sobre a nossa índole. Quem diria, por exemplo, que palavras como botequim, malandro e baderna – três vocábulos que, às vezes, andam juntos até altas horas – não vieram do carioquês castiço ou de uma remota raiz africana, mas do italiano? Sendo que baderna (desordem, confusão) nasceu de uma dançarina italiana, Maria Baderna, que atuou no Rio em 1851 e deixou os estudantes em polvorosa, fazendo... baderna pelas ruas. E quem diria também que bossa (inchação, protuberância, mas também aptidão, queda, vocação) vem do francês bosse e usa-se em português desde o século XVIII? Ou que Garrincha, o jogador, cujo nome derivou de um passarinho chamado garricha, pode ter que ver com garrir, do latim garrire, significando ressoar, tagarelar, chilrear? E não é interessante que moleque (indivíduo sem palavra ou sem seriedade, canalha, velhaco, patife) esteja regredindo em São Paulo a seu sentido original em quimbundo, mu'leke, menino, rapazote?
Tudo isso me ocorreu outro dia ao ouvir um antigo disco de Jobim, composto exclusivamente de músicas que falam da natureza, do ambiente, da conservação. Algumas delas eram "Águas de Março", " Sabiá", "O Boto", "Estrada do Sol", "Chovendo na Roseira", cada qual mais delicada, eterna, definitiva. Tive de me beliscar para me convencer de que Tom já não está entre nós. Sua produção de beleza ao piano, seus jogos de palavras em mesas de botequins, seu amor ao Brasil, tudo isso cessou de repente numa sala de cirurgia em Nova Iorque, em dezembro de 1994.
Amor tem sido uma palavra quase sem uso no Brasil ultimamente. E não há dicionário que comporte os seus antónimos – nos quais estamos mergulhados.
Cf.: Como inventar um palavrão?, 20 insultos inconvenientes (e pouco conhecidos…)
crónica publicada no Diário de Notícias de 21 de outubro de 2018