O problema não foi (deixar) fotocopiar os três livros-relíquias no tão caraterístico "mercado ambulante" de Luanda – mas o que a norma recomenda e o uso do português em Angola há muito subverteu quanto ao conjuntivo. Crónica do autor no semanário “Nova Gazeta" de 20/02/2014.
Hoje pareceu-me que as pessoas começaram a tomar consciência de que não podem transformar em mercado as ruas do São Paulo, sobretudo a avenida Ngola Kiluanje e a cónego Manuel das Neves, em Luanda.
Até às oito, estava tudo limpinho. Desta vez, eram os próprios compradores que zungavam1 à procura delas, as zungueiras, e eu fazia parte dos que queriam comprar algo sem ter de dar muitas voltas à cidade nem à cabeça.
Como tem sido hábito, elas começam a deambular muito cedo, por volta das seis, sete horas da manhã, o mais tardar. Dá até a impressão de que as zungueiras adivinham o que as pessoas precisam. Eu, por exemplo, precisava de um livro e tinha (quase) a certeza de que encontraria no ‘São Paulo’. E encontrei, num beco aonde se escondia dos fiscais, uma senhora com o livro Textos Africanos, dos tempos em que estudar era um «dever revolucionário», e podíamos deliciar-nos com o Emigrante, de Jorge Barbosa, Naufrágio, de Manuel Lopes, Quero ser tambor, de José Craveirinha, e com textos de Mário Pinto de Andrade, António Jacinto, Agostinho Neto, entre outros. «É uma relíquia» disse a um comprador que também queria o livro que eu acabava de comprar.
«Oxalá houvesse mais um livro», desabafou. «Mano, não vai ainda, por favor. Deixa-me só fotocopiar esses três textos. Fazem-me lembrar do tempo em que tínhamos aquelas aulas de leitura no pátio da escola».
Claro que para mim não havia problema nenhum, se não fosse o «não vai», que, na verdade, não seria problema, se não estivéssemos sujeitos à norma europeia do português, que prevê o uso do conjuntivo em frases imperativas negativas.
Ou seja, é comum, cá entre nós, usarmos frases como «não faz isso” (o Ady Cudz canta “baby, não vai”), «não dá confiança a essa gente», e por aí afora. Parece uma revolução linguística.
«Mano, desculpa pela demora. Não fica triste comigo. Havia muita gente a fotocopiar», explica. «Não faz mal, meu caro», acalmei-o.
Apesar de em Angola se ouvir de quase todos este tipo de construção – imperativo negativo formado com as formas verbais no indicativo –, a norma à qual estamos sujeitos determina que sejam usadas as formas do conjuntivo. Em vez de «não vai», deve usar-se «não vá», assim como no lugar de «não faz», «não faça», e de «não dá», «não dê».
Ao despedir-se da zungueira, o jovem recomenda: «Se encontrar mais livros desses, não se esquece de mim. Este é o meu número». Eu não me esqueci e aproveito para reforçar: «Não se esqueça…».
1 = circulavam (zungar verbo formado do substantivo zungueira, que no português de Angola se chama às vendedoras ambulantes, percorrendo as ruas de Luanda com uma bacia cheia de fruta, peixe ou outros produtos à cabeça. Derivado do quimbundo nzunga’, resultado da forma verbal ‘kuzunga’ (circular, rodear).
Outros textos de Edno Pimentel sobre o português de Angola
in semanário Nova Gazeta, de Luanda, publicado no dia 20 de fevereiro de 2014 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.