De forma diferente do que se verifica no Brasil na concordância entre tu e a pessoa verbal, em Angola alguns falantes erram na concordância entre o pronome você e o verbo, usando a 2.ª pessoa do singular. Sobre isso nos fala Edno Pimentel em mais uma crónica do Professor Ferrão sobre os usos do português em Angola.
Não costumo dar palpites quando o assunto é relacionamento, mas às vezes, quando vejo a aflição em que um amigo se encontra, dá-me uma comichão na língua e pronto. Lá estou eu a ‘palrar’.
Voltou a acontecer no caso do Carlos, um ex-estudante em 2002, por quem eu tinha, e ainda tenho, um grande afecto. Não que não tivesse pelos outros, mas este era diferente e especial. Sempre muito audaz, curioso e com grande interesse em aprender coisas novas. É do tipo de aluno em quem o professor pensa quando está a planificar as aulas. Carlos, porém, tinha um defeito, e como diziam os colegas, «gosta muito de aparecer». Era indiscreto, nunca se continha quando os colegas se mostrassem indecisos, ou cometessem algum erro, lá vinha o Carlos: «não se diz ‘não diz-se’, diz-se ‘não se diz’», só para citar um exemplo.
Talvez não tivesse a intenção de espezinhar, mas acabava fazendo. E durante a nossa conversa na Luegi A’Nkonda, rua onde morava, aparece um amigo com quem combinara encontrar-se. «Acho que não entendi o que você falaste!», exclamou o amigo.
«Não. Quem não entendeu o que você falou fui eu», retorquiu Carlos.
Como a minha mochila estava pesada, afastei-me um pouco e pu-la no carro. Foi apenas uma forma que encontrei para deixá-los a sós.
Enquanto isso, Carlos repetia vezes sem conta a forma correcta sem que o amigo desse conta da tentativa de correcção. Aborrecido, Carlos desiste e admite: «Não faz mal. Acho que eu mesmo é que não entendi». Aliviado por não levar a culpa, o amigo respira fundo diz: «Ainda bem que você reconheceste».
Certamente foi por influência de alguém que o jovem cristalizou (incorrectamente) a forma de tratamento por você com a forma verbal da 2.ª pessoa.
Ernani Terra, na Minigramática (São Paulo, editora Scipione, 2006), refere que “Você e os demais pronomes de tratamento (Vossa Majestade, Vossa Alteza, etc.), embora se refiram à pessoa com quem falamos, (segunda pessoa, portanto), comportam-se gramaticalmente como pronomes da terceira pessoa. Ex: Você trouxe [os] seus documentos?”.
Aconselho, por isso, que o amigo do meu ex-estudante opte por «não entendi o que você falou» ou então «não entendi o que tu falaste».
In jornal Nova Gazeta, de Luanda, publicado em 27 de junho de 2013 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.