Entrevista da jornalista Fabiana Godoi, correspondente do jornal Público em São Paulo, ao académico, gramático e filólogo brasileiro Evanildo Bechara. Aos 82 anos de idade, aquele que é considerado o pai do Acordo Ortográfico no Brasil critica aqui os que afirmam que Portugal sofreu mais mudanças do que o Brasil com a nova reforma do português escrito: «Quem diz isso não leu o Acordo.»
O que houve foi uma reforma, ou um acordo?
É importante esclarecer isso. No Brasil houve uma reforma em 1946 e, em Portugal, em 1945. Aí, sim, foi uma reforma. Agora, não. Não houve uma reforma da ortografia. Houve um acordo nos pontos em que havia desacordo. A discordância maior era que no Brasil havia excesso de acentos diferenciais. E, em Portugal, do emprego de consoantes que não se articulam, como, por exemplo, "director".
Um ano e meio depois de ter sido adoptado, como avalia a repercussão do Acordo entre a população brasileira?
Tanto em Portugal como no Brasil, todos os órgãos que passaram a usar o Acordo são unânimes em dizer que as mudanças são mínimas.
Mas em Portugal houve uma resistência grande, maior inclusive do que no Brasil...
A crítica em Portugal é a de que os brasileiros estão mais interessados e se acham mais ávidos porque os portugueses vão ter de alterar mais do que os brasileiros. Não é verdade. Quem diz isso não leu o Acordo. Na realidade, a única mudança séria por que vai passar Portugal e os países africanos é a não escrita das consoantes não articuladas, o que é bom do ponto de vista pedagógico. Como é que uma criança que está começando a escrever em português vai escrever "Egipto", se ela não ouve este "p"? Como vai escrever "director" com "c", se ela não ouve deste jeito? Na reforma para os portugueses, a maior dose é esta. Enquanto nós, brasileiros, vamos ter de abolir o trema, abolir o acento agudo nos ditongos abertos... O brasileiro pronuncia "idéia", mas vai escrever "ideia". Os brasileiros vão deixar de colocar o circunflexo em palavras como "voo" e "enjoo", deixar o circunflexo em "lêem", "vêem". Os brasileiros vão ter mais mudanças que os portugueses.
Esperava essas críticas?
Toda a mudança se acompanha de uma de três atitudes: ou uma crítica veemente, ou uma adesão ardorosa ou desdém, ou seja, as pessoas que vão ignorar o Acordo e continuar a escrever como antes. E, neste ponto, está certo. Porque uma mudança ortográfica não é para a geração que a faz. É para a geração futura. É para tentar simplificar o ensino da língua para as crianças e também para os estrangeiros. A unificação ortográfica tem não somente o aspecto de unir duas ortografias oficiais numa só, como facilitar a aprendizagem da língua pelas crianças.
Como o senhor analisa a relação dos portugueses com a língua e com mudanças como o Acordo?
Os portugueses sempre se consideraram os donos da língua. Hoje há vários donos. Somos todos donos, todos nós que a utilizamos como língua materna e como língua de expressão. Agora esta parte histórica cabe a Portugal. Este foi o grande património linguístico que Portugal nos deixou e que nós estamos honrando. Cândido de Figueiredo, no prefácio da terceira edição do seu dicionário, diz lá textualmente que os portugueses sempre aprenderam gramática com os brasileiros. Hoje, Portugal tem excelentes gramáticas, mas até há pouco tempo tinha poucas, em relação aos brasileiros. Os portugueses amam a língua, como os brasileiros também o fazem.
Como avalia o ritmo a que o acordo tem sido adoptado?
No Brasil, a adopção foi geral. Livros didácticos, não didácticos, a imprensa. Em Portugal, pouco a pouco [cita o jornal Expresso]. É um movimento. Para o grande público a ortografia é memória visual. Ele escreve a palavra como vê a palavra escrita. Nos jornais, livros, televisão, todos escrevendo de acordo com as mudanças, a população vai aderir. No Brasil, este Acordo estará totalmente implantado em menos de um ano e meio.
Alguns críticos dizem que este Acordo é um gasto desnecessário de dinheiro, uma imposição das academias. O que acha disso?
A ortografia já teve inúmeras reformas. Ninguém ficou pobre por causa disso. Disse-se que a reforma veio de cima para baixo. Acontece que todas as reformas, as leis que têm efeito colectivo, vêm de cima para baixo. São leis a que você obedece naturalmente.