Agradeço ao consulente as observações feitas, que me levaram a reformular ligeiramente e a desenvolver em nota alguns aspetos da análise que propus. Passo a comentar cada um dos pontos abordados pelo consulente:
1. A barra que usei na sequência «põe-me onde se use toda a feridade,/ entre liões e tigres» (mantenho a ortografia da fonte consultada) não tem qualquer papel na análise sintática; é apenas a indicação de mudança de verso.
2. Os lapsos estão corrigidos, mas, quanto à análise de «entre liões e tigres», não concordo com o consulente.
Poderia atribuir ambiguidade à sequência «põe-me onde se use toda a feridade,/ entre liões e tigres», tanto a tomando na ordem de constituintes que apresenta, como considerando que «entre liões e tigres” é o complemento oblíquo de «põe-me»:
a) no primeiro caso, «entre liões e tigres» é um aposto (cf. nota 3 em http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=31206) de «onde se use toda a feridade»;
b) no segundo caso, aceitando a ordem «põe-me entre liões e tigres, onde se use toda feridade», a oração «onde se use toda a feridade» é uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa.
Contudo, tenho grandes reservas a respeito da análise em b), pelas razões que exponho na nota 2 da minha resposta já revista e que aqui transcrevo:
«[...] do ponto de vista sintático, parece-me que o grupo preposicional «entre liões e tigres» [poderia ser] encarado como complemento oblíquo de «põe-me» e «onde se use toda a feridade», como uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa, dado que tem a função de modificador apositivo de «entre liões e tigres». Esta ordem será legítima se se tiver em conta que o texto poético versificado, sobretudo o clássico, frequentemente se caracteriza pela deslocação de constituintes e palavras, com o resultado de as frases assim formadas violarem a ordem de constituintes mais habitual. No entanto, esta análise parece-me forçada, por supor a inversão da ordem entre uma oração subordinada adjetiva relativa e o seu antecedente, a qual é agramatical, como se constata de maneira mais clara no seguintes exemplos (*indica agramaticalidade): «o rei mandou matar Inês, que estava inocente»; *«o rei mandou matar que estava inocente, Inês». Por este motivo, mesmo supondo que a sequência original fosse vista como um hipérbato para justificar tal inversão agramatical, continuo a achar mais adequada, porque mais económica, a classificação de «onde se use toda a feridade» como oração subordinada substantiva relativa.»
3. Corrigi o lapso.
4. Não concordo com a análise proposta para a sequência «que entre peitos humanos não achei”, porque, para lhe chamarmos substantiva – pelo menos, no quadro de análise pressuposto pela terminologia que adotei –, a oração teria de ser introduzida ou por um complementador (que ou se, conjunções completivas) ou por pronomes relativos compatíveis com a falta de antecedente, o que exclui o pronome relativo que, o qual precisa sempre de um antecedente em contexto declarativo (*«que vai ao mar perde o lugar» e *«repete que acabaste de dizer» não são sequências gramaticais», ao contrário de «quem vai ao mar perde o lugar» e «repete o que acabaste de dizer são»). Na oração em questão, que tem natureza pronominal, a qual se infere do facto de achar (fletido como «achei») ter um argumento interno com a função de complemento direto («achar alguém/alguma coisa», no sentido de «encontrar alguém/alguma coisa»); e tem antecedente, marcado pela expressão «a piedade». Deste modo, em relação ao grupo nominal «a piedade que não achei entre peitos humanos», mantenho a classificação de «que não achei…» como oração subordinada adjetiva, a que juntei o termo restritiva, na revisão da resposta. Por outro lado, considerando que esta oração relativa modifica efetivamente o constituinte «a piedade», não nego que, semântica e referencialmente, se representa a procura do sentimento de piedade. Mas, mais uma vez, não concordo com a análise do consulente, porque, mesmo tendo em conta uma perspetiva semântica, o que se pretende é definir textualmente certo tipo de piedade, a que tem a propriedade de «não ser achada em peitos humanos». Por isso, e até indo ao encontro do ponto de vista do consulente, isto é, sem separar a sintaxe da semântica, mantenho a classificação de «que entre peitos humanos não achei» como oração subordinada adjetiva restritiva.
5. Por último, sabendo que os versos em questão fazem parte da súplica de Inês de Castro, que ocupa as estâncias 126-129 do canto III de Os Lusíadas, é preciso notar que «entre liões e tigres» é uma dos lugares para onde Inês pede a Afonso IV que a desterre; mas há outros lugares de desterro, sendo mencionadas «a Cítia fria» e a «Líbia ardente». Todos estes lugares perigosos ou ameaçadores enfatizam, por contraste e hiperbolicamente, a crueldade da ordem que Afonso IV se prepara para mandar executar. Tudo isto, portanto, faz parte de uma construção retórica que realça a violência prestes a exercer-se sobre a personagem. Neste contexto, não vejo que a análise oracional que proponho choque com a construção do sentido textual.