Agradeço ao prezado e ilustre consulente a possibilidade de refletir de novo sobre uma estrutura que constitui um desafio e que, simultaneamente, não é de fácil, nem unívoca, interpretação.
Curiosamente, na análise que anteriormente fiz, não tive em conta a designação tradicional de conjugação perifrástica, que muitos estudiosos têm vindo a abandonar nos seus trabalhos, preferindo outro tipo de abordagens, falando de modalidade, de aspeto… Se considerarmos a frase que vem sendo objeto de análise, veremos que, efetivamente, aquela frase específica não encaixa nas definições prototípicas da conjugação perifrástica. E muito provavelmente é esta posição marginal, digamos assim, que permite a não- obediência às normas da concordância preconizadas para a conjugação perifrástica. Foi esse pressuposto que me levou a propor uma análise distinta, e que não pretende ser definitiva (não teria como…), nem indiscutível. É minha convicção de que a expressão «vir a ser», podendo embora, em outros contextos, ser interpretada como conjugação perifrástica típica com sentidos próximos de «chegar a ser, converter-se em, tornar-se», naquela frase não o é, aproximando-se, eventualmente, do sentido que refere em Aulete de «tratar-se de».
Assumindo que «vir a ser» na frase «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que vem (venho) a ser eu mesmo» tem o sentido de «tratar-se de», ou, como propõe Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (2001), p. 233, «quase o mesmo sentido do verbo principal empregado sozinho», dificilmente lhe encontraremos um valor prototipicamente perifrástico, que se materializa veiculando valores aspetuais temporais ou modais.
É esse facto, a meu ver, que possibilita a flutuação da concordância, que, parecendo-nos estranha, não deixamos de aceitar…
Curiosamente, nos restantes exemplos que o consulente propõe, o sentido aproxima-se mais do que é veiculado pela conjugação perifrástica, o que, partindo do princípio de que as frases apresentadas correspondem a realizações linguísticas efetivamente ocorridas, não invalida, ao que parece, a flutuação da concordância. Todavia, nestes exemplos, que numero a seguir de 1 a 4, estamos mais próximos da tradicional conjugação perifrástica, sendo eventualmente mais estranha a não-concordância. Realcemos, no entanto, que as frases apresentadas veiculam possibilidades de interpretação diversas.
1. «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que devo (deve) ser eu mesmo.»
Valor aspetual de possibilidade, hipótese… Concordância preferida: a primeira pessoa.
2. «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que continuo (continua) a ser eu mesmo.»
Valor de continuidade… Concordância preferida: a primeira pessoa.
3. «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que passo (passa) a ser eu mesmo.»
4. «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que começo (começa) a ser eu mesmo.»
Em 3 e em 4 há uma ideia de evolução, de mudança. Aqui preferiria, igualmente, a primeira pessoa, e, se alguma coisa me parece desadequada, é o uso do tempo verbal. Com efeito, a mudança a ocorrer teria sido no mesmo tempo (ou imediatamente a seguir) que a ação de criticar, pelo que o auxiliar perifrástico deveria estar no pretérito perfeito: «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que passei/comecei a ser eu mesmo.»
Já que estamos no mundo das análises especulativas, vejamos um pouco o exemplo de Aulete para o valor «tratar-se de»: «Aquela que você criticou vem a ser minha mulher.» Repare-se que, se o tempo verbal fosse distinto, o sentido já não seria de «tratar-se de», mas a localização de uma ação no passado, embora de valor futuro em relação a uma outra (quase como acontece em 3 e 4, acima). A ação anterior seria «você criticou» e, no futuro em relação a esta, teríamos uma mudança: «veio/viria a ser minha mulher.» Realço ainda que «viria» tem aqui não um valor modal condicional, preferido na classificação que se faz em Portugal, e, sim, um valor de futuro do pretérito como é classificado habitualmente no Brasil.
Em síntese, se síntese é possível nesta reflexão, a frase em apreço permite a não-obediência às regras da perifrástica, porque não é uma perifrástica prototípica, embora se construa com uma expressão («vir a» + infinitivo) que, em outras frases, assume valor perifrástico.
Grata pela sua leitura atenta e pela capacidade de me fazer refletir.