DÚVIDAS

Deparou-se-me / deparei-me com

Recentemente recebi um puxão de orelhas do Ciberdúvidas. Cometi o sacrilégio de usar o verbo "deparar" de forma incorreta. Eis o "puxão de orelhas":

"Obs. – Peço licença para dizer o seguinte. Está errada a frase que lemos no fim da consulta: «(...) deparo-me (...) com variações (...)».

"Não somos nós que nos deparamos com as variações. As variações é que se nos deparam a nós. Digamos: deparam-se-me variações, Fulano deparou-se-me, a ele deparou-se a mais bela paisagem, etc. Consulte-se um dicionário."

Então consultei o Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Pedro Luft. Realmente, o professor tem razão no que expôs, mas há também a possibilidade (cf. Luft) que aqui transcrevo:

" (...) 3. T(Dp)I: deparar(-se) com alguém ou algo (em certo lugar) ou TD(I): deparar alguém ou algo (em certo lugar); depará-lo (lá, ali, etc.) (OBS.). Encontrar(-se), topar(-se) de repente ou por acaso; avistar-se inesperadamente; defrontar-se: Deparei(-me) com um mendigo (na porta da igreja). Deparei um mendigo (ali). '... a satisfação de quem num país estranho se deparasse com um conhecido' (José Lins do Rego: Lessa). 'Ao dobrar a esquina deparei (com) o velho amigo' (...)

"OBS. Sintaxe originária: 1) Agente não humano depara algo ou alguém (a alguém), onde o agente é o acaso, a sorte, etc., Deus ou algum santo. Em seguida, a voz reflexiva ou passiva pronominal correspondente: 2) Algo ou alguém depara-se (a alguém) (em certo lugar). A idéia de 'encontro', mais tarde, causou a semântica/sintaxe derivada: 3) Alguém depara(-se) com algo ou alguém (em certo lugar) ou depara algo ou alguém (em certo lugar)."

Essa sintaxe, condenada pelos puristas, é defendida por Heráclito Graça e, ainda, por Antenor Nascentes, que "dá um exemplo machadiano onde a sintaxe originária se cruza com a secundária de com : '...a boa estrela (...) sempre me depara (...) com uma tábua de salvação' (por:..me depara uma tábua...)".

Na verdade, ao usar o " deparei-me com" devo tê-lo feito de "ouvido". Depois fiquei pensando: se usarmos o verbo como querem os puristas, o que será da 1ª pessoa do verbo (eu/nós)? O verbo será defectivo?

Gostaria que o ilustre professor pudesse fazer o comentário dessas colocações.

Mais uma vez, obrigada por manter o Ciberdúvidas em tão alto nível. Aliás, é o único lugar que me presta socorro " lingüístico"!

Resposta

Quando fiz a observação sobre «deparo-me com variações», não pretendi generalizar, mas apenas referir-me àquela frase, e não aos regimes do verbo, senão teria muito que escrever. Mas exagerei no que disse.

O verbo deparar, além doutras significações, quer dizer:

1 – encontrar inesperadamente alguém ou alguma coisa sem contar com isso; defrontar; topar;

2 – aparecer; apresentar-se.

Aqui vão duas frases elucidativas. A Maria seguiu por uma rua da cidade, e depois diz:

(a) Já ia a dobrar a esquina e, de repente, deparei com o Pedro. Até nos íamos chocando.

Doutra ocasião, a Maria ia de automóvel por uma estrada fora, e conta a sua viagem, dizendo:

(b) ... a paisagem ia mudando, e, a certa altura, deparou-se-me uma extensa planície de videiras verdinhas e viçosas, que me encantaram.

Na frase (a), há o repentino e o inesperado. Por isso, empregamos a construção deparar com.

Na frase (b), não há o repentino e o inesperado que vemos na frase (a). É esta a situação da frase da nossa consulente Berenice. Falo menos, assim, a interpretar. E, por isso, devemos dizer deparam-se-me variações. Contudo exagerei, classificando a frase de errada, porque estamos mais em presença dum caso de estilo do que de pura correcção. Mas quê? Escorregou-me pelos dedos abaixo o maldito particípio errada, que se estampou no papel, atravessou o mar e só parou no Brasil. Que exagero o meu! Não sei a que foi devido. Talvez a distracção. Mas não tem importância. Agarro já com garra no amaldiçoado particípio errada, puxo por ele com toda a força... e zás!, atiro-o já para o lixo. E peço ao Ciberdúvidas que faça o mesmo. Pronto! Já está no lixo e lá fica, porque esta é muito mais de estilo do que de pura correcção.

E para terminar: estou muito agradecido à nossa prezada D.ª Berenice – mesmo muito! – por me ter chamado a atenção para o caso. E aqui vai um pedido de desculpa com um bem haja pela delicadeza com que tratou o Ciberdúvidas. E foi tanta, que se lembrou até de receber «puxão de orelhas» por si própria imaginado... mas nada, nada merecido!

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