DÚVIDAS

Carácter e caractere

Há alguns dias, coloquei uma dúvida que gostaria de ver esclarecida. Sou estudante de informática e, nos trabalhos que fazemos, empregamos a palavra "caracter" (sem acento) para nos referirmos a um certo símbolo. Também já vi alguns colegas utilizarem a palavra "caractere", com o mesmo significado.
Sucede que, consultando os vossos arquivos, verifiquei que, em Portugal, se deve utilizar a palavra "carácter" (com acento) quer nos queiramos referir ao conceito de carácter-personalidade quer ao de carácter-símbolo. Por outro lado, na mesma resposta, éramos informados que o dicionário Houaiss já regista a palavra "caractere".
Apesar desta vossa tomada de posição, o certo é que, cada vez com mais frequência, se utiliza a palavra "caracter" e, menos frequentemente, a palavra "caractere", naquele sentido de carácter-símbolo.
A vossa resposta tem a data de 12/01/2000.
Já passaram, portanto, quase cinco anos e, neste lapso de tempo, não se perdeu o hábito de escrevermos "caracter" e até mesmo "caractere".
A minha pergunta é a seguinte: não será que esta prática, que vai contra os vossos ensinamentos, não acabará por se impor a nível linguístico e acaba por ser dicionarizada?
Muito grato pela atenção dispensada.
Obrigado.

Resposta

Há muito tempo que eu registo na `comum língua´ a existência da palavra caractere (não “caracter”) com o significado particular de símbolo (ex.: em Houaiss-port. eur. e Aurélio taxativamente com a sequência ct). Alguns profissionais das gráficas em Portugal também usam esta designação para o singular dos caracteres tipográficos.

Segundo as regras (ex.: Rebelo Gonçalves), o singular de caracteres é carácter, quer para personalidade quer para símbolo. O recente Vocabulário da Academia Brasileira de Letras também não regista caractere.

Quanto ao futuro, a tendência continuará no sentido de que `a estratificação nos modelos tradicionais (frequentemente com base no grego e no latim)´ continue a ser substituída por uma maior tolerância nos hábitos das comunidades linguísticas. Com a devida vénia, respigo palavras de João Andrade Peres e Telmo Móia, na obra Áreas Críticas da Língua Portuguesa: «De qualquer modo, acima de tudo, colocamos sempre a muito difusa mas sempre soberana decisão da comunidade linguística.» O destaque negrito é meu.

Num espírito, porém, de moderação, com que procuro estudar a língua, eu fico num meio-termo. Vai mal o povo que menospreza o seu património hereditário. Como digo sempre, não devemos esquecer nunca que as palavras trazem consigo a herança de muitas gerações de falantes; mas, por outro lado, não podemos deixar de ser tolerantes, aceitando a evolução da língua como um fenómeno natural.

Neste caso concreto, penso que não posso condenar o hábito que tem havido de distinguir carácter e caractere, pois, para mim, não traz mal à língua. Pelo contrário: foi uma forma que o falante teve de construir novo significante especificamente para um dos conceitos particulares do termo carácter, reduzindo a sua relativa polissemia, que já vem do grego. Aceitemos que nos nossos dias carácter está sobretudo ligado ao sentido de conjunto de traços característicos.

Ora a invenção de novos significantes enriquece a língua, na possibilidade de escolha dos termos mais adequados na ligação semântica, tantas vezes ignorada ou resolvida com vicárias. Esta perfeição na escolha dos termos tem como exemplo o `discurso engenhoso´ do Padre António Vieira, no qual alguns trechos são clássicos de propriedade na utilização das palavras. Discurso por alguns considerado já obsoleto; mas por muitos, como eu, ainda um encantamento...

Ao seu dispor,

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa