DÚVIDAS

Anos sessenta, outra vez

Permito-me discordar do nobre Professor José Neves Henriques quanto à resposta suscitada pela expressão acima. A meu ver, "anos sessentas" tem significado diferente de "sessenta anos". No primeiro caso, há substantivo funcionando como aposto, por isso, no plural; no segundo caso, trata-se, é claro, de numeral.

Os numerais, quando substantivados, como se sabe, formam plural.

Ex.: Escreveu muitos quatros no pedaço de papel.

Quantos noves há em noventa e nove? Há dois noves.

Assim também, 1960 foi um ano sessenta; 1961 foi outro ano sessenta. Aí já temos dois anos sessentas. Na verdade, de 1960 a 1969, há dez anos sessentas. Portanto, na minha opinião, a expressão "anos sessentas" (e não "anos sessenta", que o aposto deve concordar com o fundamental) é legítima.

Resposta

Agradeço-lhe o ter discordado de mim, porque toda a discordância me leva a pensar e não raro a estudar. E é assim, estudando e pensando, que aprendo e progrido e me vou tornando mais capaz de ajudar o próximo. Vamos então ao caso:

Não me parece que seja conveniente, e muito menos necessário, dizermos «os anos sessentas», pelo seguinte:

a) Sessenta não precisa de plural, porque a noção de pluralidade já está no substantivo anos, que abarca sessenta.

b) De facto, anos sessentas tem significado diferente de sessenta anos, mas não o tem diferente de anos sessenta.

c) Ainda há bem poucos anos se dizia apenas anos sessenta, e toda a gente compreendia. É esta a maneira corrente de, em Portugal, nos referirmos aos anos que vão de 1960 a 1969 - e todos nos entendemos.

d) Conclusão: para quê anos sessentas, se não é necessária esta pluralização de sessenta?

e) Qualquer alteração de linguagem desnecessária pode causar confusão.

f) Só é digna de louvor uma alteração à linguagem corrente, quando ela consiste na emenda dum erro.

g) O dizer-se anos sessenta explica-se do seguinte modo: é o encurtamento da expressão anos [da década de] sessenta, tal como vapor (= barco) é encurtamento de [navio de] vapor. E muitos outros há.

h) O prezado consulente apresentou os seguintes exemplos para mostrar a substantivação dos numerais:

(a) Escrevo muitos quatros no pedaço de papel.

(b) Quantos noves há em noventa e nove? Há dois noves.

Salvo melhor opinião, tanto quatros como noves não são numerais, porque não se referem a quantidades. São, sim, nomes de algarismos; isto é, são os nomes daqueles dois desenhos que empregamos na escrita para significar quantidades.

Ora reparemos: tal como a palavra mesa não é uma mesa, mas apenas um conjunto de quatro letras que significa mesa e pode indicar determinada mesa, também quatro na frase (a) não é quantidade nem sequer se refere a determinada quantidade. Refere-se, sim, apenas àquela palavra quatro, composta de seis letras.

Na frase (b), é ainda mais evidente que nove não indica número, mas sim aquele seguimento de quatro letras (nove), que noutras frases pode ser um numeral. Essa evidência é-nos patenteada pelo único numeral existente nesse exemplo: dois. A palavra nove não é numeral, mas substantivo, como muito bem observou o prezado Fernando Bueno.

i) Salvo melhor opinião, em anos sessenta, o vocábulo sessenta não é substantivo, mas numeral, porque provém de «anos [da década de] sessenta», em que o vocábulo sessenta é um numeral que abrange o número de anos que vai de 60 a 69.

j) Certíssimo que «os numerais, quando substantivos» têm plural. Sim, mas para significar outra coisa. Deixam, pois, de significar número.

l) Não é verdade «que o aposto deve concordar com o fundamental». Dois exemplos:

(a) Este livro, belíssima obra, foi escrito por Fulano. Aqui, não concorda em género.

(b) Os Lusíadas, obra fundamental da literatura portuguesa, é um livro do mundo. Aqui, o aposto não concorda com o fundamental, nem em género nem em número.

Gratíssimo por ter discordado de mim. Nunca eu tinha pensado neste assunto.

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