DÚVIDAS

A vírgula depois de certas expressões antepostas

Acabo de ler o seguinte no "Diário de Notícias":
(1) «Só em 2008, o défice orçamental estará abaixo dos 3,0% do PIB.»
Tenhamos em conta que é desejável o défice estar abaixo dos 3% e que o sentido da frase (e do respectivo contexto) é o de que o défice não ficará abaixo dos 3% antes de 2008. Sendo assim, a vírgula depois de "2008" é incorrecta e, a meu ver, perturba bastante a leitura, pois induz o leitor a uma interpretação diferente. Tratando-se de um problema muito corrente nos jornais e no que mais se escreve, julgo que o Ciberdúvidas talvez pudesse pronunciar-se sobre o assunto.
Vejamos uma sequência semelhante em que a vírgula já seria adequada:
(2) «Só em 2005, o défice crescerá 6%. Nem se imagina quanto crescerá depois!»
Neste caso, a vírgula é correctíssima. Na verdade, a frase podia ter a forma «O défice crescerá 6% só em 2005.». É a anteposição do complemento («só em 2005») que exige a vírgula, correspondente na linguagem oral a uma pausa marcada, que não ocorre no outro caso.
Julgo que a origem do erro na frase (1) vem justamente da confusão entre estes dois tipos de frase. A vírgula a mais resulta de se interpretar a expressão anteposta como um complemento deslocado, e não como o elemento de negação que realmente é.
Essa frase inicial tem as formas alternativas «O défice orçamental só em 2008 estará abaixo dos 3,0% do PIB.» ou «O défice orçamental só estará abaixo dos 3,0% do PIB em 2008.» Isto mostra que o «só» ou o «só em 2008» são modificadores do verbo que afectam a própria polaridade da frase. Introduzem um elemento de negação. O défice estará abaixo dos 3% em 2008, mas não antes disso. Por isso, o «só» aparece antes do verbo e não deve ser dele separado por uma vírgula. Separá-lo é quase o mesmo que pôr uma vírgula entre um "não" e o verbo negado.
Ainda assim, é possível uma construção como:
(3) «O défice orçamental estará abaixo do PIB só em 2008».
Julgo que esta não é uma construção frequente para exprimir o sentido indicado, mas não nego a sua gramaticalidade. Contudo, aqui é que temos uma inversão da ordem normal dos constituintes da frase, provavelmente com uma intenção estilística. A frase começa por parecer ter polaridade positiva, mas muda subitamente para uma negação. Além disso, aqui também parece que é maior o período de tempo considerado, indo além de 2008 e sendo este ano uma excepção ao montante geral do défice.
As coisas ficam ainda mais claras se se tiverem em conta expressões exclusivamente de negação, ao contrário de «só», que contém elementos de negação e de afirmação. O erro também é frequente com elas, entre as quais temos «em caso nenhum», «em caso algum», «a ninguém», «para efeitos nenhuns», etc. Vê-se muitas vezes escrito qualquer coisa como isto:
(4) «Em caso algum, será permitido um défice acima dos 10%.»
Ora, esta vírgula é erradíssima. «Em caso algum» é o elemento com que se faz a negação. Não pode ser separado do verbo por uma vírgula, tal como não se poderia pôr uma vírgula depois do «não» na frase «Não será permitido um défice acima dos 10%.» Prova disso é que, se quiséssemos escrever «em caso algum» depois do verbo, o sentido de negação só se manteria se lhe antepuséssemos um «não», ou seja, escrevendo «Não será permitido em caso algum um défice acima dos 10%.»
Mais uma vez, o equívoco de quem assim escreve é julgar que a expressão que antecede o verbo é um complemento circunstancial. De facto, a vírgula já é necessária (ou, pelo menos, admissível) na frase:
(5) «Nalguns casos, será permitido um défice acima dos 10%.»
Aqui, sim, temos um complemento anteposto, fora da sua ordem "normal". Daí a vírgula.
Os falsos complementos cujo verdadeiro papel é de elementos de negação não permitem essa vírgula. As formas correctas são, pois:
«Só em 2008 o défice orçamental estará abaixo dos 3,0% do PIB.»
«Em caso algum será permitido um défice acima dos 10%.»
Agradeço a atenção que o Ciberdúvidas possa querer dar a este tema, prosseguindo o seu muito meritório múnus de guardião da língua portuguesa.

Resposta

A grande mobilidade que a língua tem permite, de facto, a construção das frases de diferentes formas. Mas isso não impede que ela seja ao mesmo tempo muito rigorosa, tornando inadmissíveis algumas, sob o risco de o sentido da frase ficar ambíguo ou mesmo deturpado.
Da análise dos exemplos apresentados pelo consulente, ressaltou, para mim, a importância que a colocação do advérbio de exclusão «só» aí assume.
Pegando na primeira frase, a opção que se me apresenta mais clara e que, ao mesmo tempo, respeita a ordem directa seria:
«O défice orçamental só estará abaixo dos 3,0% do PIB em 2008.»
Independentemente da sua posição, o advérbio modifica o valor da expressão «estar abaixo dos 3.0% do PIB». A frase pode ser apresentada de várias formas, desde que não surja a vírgula de separação entre o modificador e a expressão modificada.
Já no outro exemplo apresentado, o advérbio restringe o valor não do verbo mas do complemento circunstancial e, portanto, funcionam, advérbio e expressão de tempo, como um bloco que pode ficar isolado por vírgulas: «Só em 2005, o défice crescerá 6%.»
Já a colocação do advérbio junto ao verbo implicaria uma alteração total do sentido da frase: «O défice só crescerá 6% em 2005.»
É interessante verificarmos a subtileza e rigor existentes por detrás da colocação ou não de uma simples vírgula, como o consulente muito bem demonstrou. Que tal subtileza falta muitas vezes a profissionais da Comunicação Social, é coisa a que já nos fomos habituando...
Que o défice orçamental seja superior ao que deveria, também…

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