Rúben Correia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Rúben Correia
Rúben Correia
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Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa - Português Língua Estrangeira/Língua Segunda na referida. Prepara atualmente um doutoramento na mesma área.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A minha dúvida prende-se com a divisão silábica da palavra superfície. Da pesquisa que fiz pré-acordo, não posso separar um hiato, onde a sílaba final é átona, neste caso o -cie. Mas e depois do acordo? Algo mudou?

Muito grato!

Resposta:

Nada muda quanto à divisão silábica para efeitos de translineação, pelo que a partição de superfície continua ser su-per-fí-cie, sem se separar o encontro vocálico da sequência final -cie.

 A razão para não se separar -cie reside, em primeiro lugar, num critério que não está explícito no Acordo Ortográfico de 1945 (AO 1945) nem no de 1990, mas que se encontra exposto no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, pág. 381, n.º 2), de Rebelo Gonçalves (manteve-se a ortografia original):

«Assim como é lícita a divisão áure-as, também o será, evidentemente, uma divisão como áure-a. Essa, porém, não se recomenda pràticamente: além de inestética sob o aspecto gráfico (separação de uma única letra), torna-se, de facto, desnecessária, visto o lugar ocupado pelo hífen chegar para a vogal que mudaria de linha.»

Por outras palavras, o AO 1945 permite, em princípio, a separação de duas vogais seguidas desde que não formem ditongo decrescente (isto é, o lei- de leite não se separa, porque ei é um ditongo decrescente) ou a primeira não seja um u precedido de g ou q (em arguente, -guen- não se separa, o mesmo acontecendo com o -quen- de deliquente). Contudo, não encara como ditongos (crescentes) os encontros vocálicos finais de palavras como áurea, história ou su...

Pergunta:

Gostaria de saber se, na frase «As agências de crédito devem ser/estar sujeitas a fiscalização», devo utilizar o verbo ser ou estar. Assim, a expressão correcta é «estar sujeito a», ou «ser sujeito a»?

Resposta:

Na frase em apreço, a consulente tanto pode empregar o verbo ser como o verbo estar («As agências de crédito devem estar/ser sujeitas a fiscalização»). Sobre o uso de sujeito, Maria Helena de Moura Neves, no Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora Unesp, 2003), faz o seguinte comentário:

«A forma sujeito é usada com os verbos ser e estar e também é usada como adjetivo. O infrator é SUJEITO a multas de até US$ 250 mil e prisão. [...] O comerciante que infringir a norma está SUJEITO a multa de 1500 reais. [...] O presidente não ficará prisioneiro nem SUJEITO a pressões, [...].»

Também no corpus disponibilizado pelo Cetempublico encontramos diversos exemplos desta dupla possibilidade:

«O dólar norte-americano, que ultimamente vinha a beneficiar da crise existente no SME, estava ontem sujeito a pressão por parte dos operadores (…).»

«O Banco Totta & Açores também começa a mostrar maior dinamismo, com os operadores bastante ansiosos em saber o valor das avaliações a que o banco está a ser sujeito para efeitos da privatização (…).»

Pergunta:

As palavras minimercado, tripé, bimotor e pós-graduação como se classificam quanto ao seu processo de formação? São derivadas por prefixação, ou formadas por composição morfológica?

Resposta:

As palavras que a consulente refere são, de facto, formadas por prefixação. Nelas encontramos prefixos modificadores que, segundo Alina Villalva (Gramática da Língua Portuguesa, Mateus et al., 2003, p. 963), «não determinam a categoria sintática da palavra em que ocorrem, nem o valor das categorias morfológicas, morfossintáticas e morfossemânticas relevantes e que podem coocorrer em posições adjacentes». Assim, em minimercado, temos o prefixo avaliativo mini-; em tripé* e bimotor, temos os prefixos de quantificação tri- e bi-, respetivamente; por fim, em pós-graduação, regista-se o prefixo de referência temporal pós-.

* O Dicionário Houaiss, na nota etimológica deste vocábulo, apresenta-o como derivando do latim tripes, edis, «que tem três pés».

Pergunta:

A palavra habitante é simples, ou composta?

Habitante não será aquele que vive no seu habitat?

Resposta:

A palavra habitante (substantivo e adjetivo comum de dois) pode ser encarada como palavra simples, atendendo a que, de acordo com o Dicionário Houaiss, se trata de um cultismo (isto é, uma palavra surgida em português por via erudita) que tem origem no particípio presente habitans, antis, do verbo latino habitare («habitar, morar, residir…»). No entanto, a palavra também é analisável noutra perspetiva, dado que apresenta a terminação -nte, que é um sufixo; nesse caso, diz-se que é uma palavra complexa (e não composta), mais precisamente, uma palavra derivada por sufixação do tema verbal de habitar – habita-.

Assinale-se, portanto, que habitante não deriva de habitat, muito embora este substantivo tenha origem na flexão do verbo latino habitare.  Verifica-se, é claro, uma grande afinidade semântica entre habitat e habitante, uma vez que esta forma designa aquele que habita, reside ou vive num determinado lugar, ou seja, num espaço suscetível de ser concebido como um habitat.

Pergunta:

Gostaria de saber se consideram que a seguinte frase utiliza linguagem negativa e, se possível, a respectiva fundamentação.

«Vou sair, a não ser que chova.»

Obrigado.

Resposta:

«A não ser que» é uma locução conjuntiva que introduz uma oração subordinada condicional finita com verbo no modo conjuntivo. A própria locução veicula em si uma polaridade negativa, expressa pelo advérbio não, e encerra uma condição que pode alterar o facto expresso pela frase subordinante («vou sair»). A mesma frase pode ser expressa do seguinte modo: «Só se não chover, sairei» (neste caso, com o verbo no futuro simples do indicativo). A mesma locução, sem o conetor que a introduzir a oração subordinada, poderá ser seguida de uma oração reduzida de infinitivo («Nada me impede de sair, a não ser chover») ou mesmo de um grupo nominal («Todos fizeram o trabalho, a não ser o João»).