Rita Veloso - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Rita Veloso
Rita Veloso
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Licenciada em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde é doutoranda; docente nesta Faculdade de 1997 a 2014 e na ESEI Maria Ulrich desde setembro de 2014; investigadora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa desde 1995; colaboradora da Comissão Organizadora da Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Luísa tinha muito talento para que eu não me lembrasse dela.»

«Luísa tinha muito talento para que eu me lembrasse dela.»

Qual é o entendimento que se pode dar às frases acima? Querem dizer a mesma coisa?

Obrigado.

Resposta:

Nas frases que apresenta, a leitura mais saliente é aquela em que a oração subordinada «para que eu (não) me lembrasse dela» veicula uma consequência da situação descrita na oração principal, comportando-se, portanto, como uma oração consecutiva. As frases não querem dizer a mesma coisa (querem dizer o contrário uma da outra).

Para facilitar a interpretação das duas frases, imaginemos um contexto em que as possamos utilizar: eu estou a organizar um espetáculo de bailado no meu bairro e tenho uma amiga, chamada Luísa, que é uma excelente bailarina.

1 – «Luísa tinha muito talento para que eu não me lembrasse dela.»

Neste caso, a frase significa que a Luísa tinha tanto talento, que era impossível não me lembrar dela para entrar no meu espetáculo.

2– «Luísa tinha muito talento para que eu me lembrasse dela.»

Em contrapartida, eu posso proferir a frase 2 se estiver a considerar que o talento da Luísa é de um nível superior ao do espetáculo que estou a organizar, amador (ou seja, o seu talento é tanto, que nem me lembrei dela).

Sem um contexto adequado, existe alguma dificuldade na interpretação da segunda frase, possivelmente devido à expressão «muito talento», que tem uma conotação positiva, tornando inesperada a consequência de o falante não pensar numa pessoa com tais características. Este aspeto pode ter levado o nosso consulente a atribuir-lhe uma interpretação igual à da primeira frase.

(Existe ainda uma interpretação em que a oração subordinada é complemento do nome talento, introduzida pela preposição que este rege: «talento para a música», «talento para vender automóveis». Neste caso, a primeira frase significa que a Luísa tem muito talento para fazer com que eu não me lembre ...

Pergunta:

Sempre me perguntei se é possível tirar a ambiguidade de frases negativas sucedidas por conjunções causais. Por exemplo, em «Ele não foi à aula, porque estava com preguiça», o fato de o sujeito estar com preguiça pode ser de fato a causa de sua ausência; por outro ângulo, o interlocutor pode, na verdade, estar clarificando que esta não é a verdadeira causa, mas que há outra razão. Adicionando mais detalhes para que este segundo caso fique claro: «Ele não foi à aula, porque estava com preguiça, mas porque estava doente.»

Pergunto-lhes se, neste segundo sentido, a segunda oração não acaba se tornando subordinada explicativa, já que estar com preguiça não é a causa da ausência, mas uma explicação.

Resposta:

Antes de mais, e para responder já à primeira parte da sua pergunta, importa saber que essa ambiguidade não existe com todas as conjunções causais. Uma forma de a evitar, portanto, é escolher outra conjunção.

Na frase que nos apresenta, a segunda interpretação é forçada pelo conteúdo das duas orações e pelo nosso conhecimento do mundo. Na verdade, a ambiguidade que existe é ligeiramente diferente, como podemos ver se alterarmos o exemplo de forma a que não haja a associação imediata entre «estar doente» e «não ir às aulas»:

1 – «Ele não foi à aula porque queria ver a namorada.»

As duas leituras possíveis têm que ver com a oração em que a negação é interpretada – a oração principal, ou a oração subordinada (a causa da situação descrita pela principal):

1’ – «Ele não foi, de facto, à aula, e a razão de não ter ido foi querer ver a namorada.»

1’’ – «Ele foi à aula, não porque queria ver a namorada, mas porque queria tirar dúvidas para o teste (por exemplo; neste caso, infere-se que a namorada é colega do sujeito).»

Como referido, algumas conjunções permitem o acesso da negação à oração subordinada, outras não. Assim, vejamos:

2 – «Ele não foi à aula, uma vez que queria ver a namorada.»

Enquanto a frase em 1 pode ter a interpretação que aponta, na frase 2, só a leitura em que a negação incide na oração principal é possível:

2’ – «Ele não foi, de facto, à aula, e a razão de não ter ido foi querer ver a namorada.»

2’’ – *«Ele foi à aula, não uma vez que que queria ver a namorada, mas uma vez que queria tirar dúvidas para o teste.»

...

Pergunta:

Vi uma frase num livro da gramática que dizia assim: «Quem tiver tempo livre e queira fazer um trabalho voluntário pode consultar este site.» Não compreendo o uso do futuro do conjuntivo tiver e do presente do conjuntivo queira. Peço a explicação.

Obrigada.

Resposta:

A sua pergunta envolve três questões diferentes: por um lado, os fatores que condicionam o uso do conjuntivo, por oposição ao indicativo; por outro, os valores associados ao conjuntivo quando ocorre em orações relativas e a diferença de interpretação entre presente e futuro do conjuntivo.

O conjuntivo

Enquanto o modo indicativo ocorre em frases em que o falante acredita na verdade das situações descritas nessas frases (associado, portanto, a valores de modalidade epistémica positiva – ou crença positiva), o modo conjuntivo ocorre, principalmente, em frases que descrevem situações hipotéticas – que podem vir ou não a ocorrer, que podiam ter ocorrido, mas não ocorreram, etc.

Assim, ao proferir a frase 1, o falante expressa que acredita que a situação descrita na frase se vai realizar, ao contrário do que acontece na frase 2, em que o falante expressa que a situação descrita é apenas hipotética (valor desencadeado pelo advérbio talvez):

1 – «Amanhã, o Afonso vem jantar connosco.»

2 – «Amanhã, talvez o Afonso venha jantar connosco.»

As relativas

A frase com os verbos no conjuntivo que nos apresenta pertence à classe das orações relativas: «quem tiver tempo livre e queira fazer trabalho voluntário».

Neste caso, a diferença entre o valor de crença positiva (com o indicativo) e o valor hipotético (com o conjuntivo) não incide sobre a situação, mas, sim, sobre a existência de entidades a que se aplique a situação descrita na oração relativa:

3 – «Quem tem tempo livre e quer fazer trabalho voluntário pod...