Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
Pedro Mateus
30K

Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tinha gosto que me esclarecessem o seguinte: qual é o vocábulo usado para definir a adivinhação através de uma bola de cristal? Tenho reparado que normalmente as palavras deste tipo terminam em “mancia”, vocábulo de origem grega que significa, segundo creio, «adivinhação». Ora, se bola, em grego, se diz σφαιρα, e cristal se diz χρύσταλλος, como se poderá, a partir destes dois vocábulos, construir um termo que defina a adivinhação através de uma bola de cristal? É que não o vejo dicionarizado.

Muito obrigado. E parabéns pelo vosso magnífico site!

Resposta:

O termo correcto é cristalomancia: «adivinhação baseada em imagens que aparecem, ou se pretende aparecerem, em bolas de cristal, espelhos e objetos afins, assim como na água e outras superfícies de propriedades refletoras»; «Suposta forma de adivinhar por meio de gelo, cristal ou espelho» (Dicionário Houaiss; Priberam).

A palavra é formada da seguinte forma: cristal (do latim crystallum,i, 'gelo, cristal, vidro transparente', adaptado do grego krústallos) + -mancia (elemento de composição pospositivo, «do grego -manteía, 'adivinhação por meio de algo designado pelo precedente', como adotado em ornithomanteía,as, 'adivinhação pelo voo ou grito das aves' (português ornitomancia); seu uso em português deve ter sido desencadeado pelo francês necromancie (1546), donde o português necromancia (1670); ocorre em vocábulos de vária época, alguns já existentes em grego e latim, entre os quais: aeromancia, agromancia, aritmancia/aritmomancia, bibliomancia, brizomancia, cartomancia, cleromancia, craniomancia, dafnomancia, datilomancia, demonomancia, enomancia, geomancia, glossomancia, halomancia, hidromancia, lacomancia, lampadomancia, litomancia, nefelomancia, nigromancia, onfalomancia, onicomancia, partenomancia, piromancia, psicomancia, quiromancia, rabdomancia, rapsodomancia, salimancia, selenoman...

Pergunta:

Os dicionários brasileiros da língua portuguesa afirmam que a palavra raso, no sentido de «de pouca profundidade; não fundo» (adjetivo) e «lugar em que a água é pouco profunda» (substantivo), seria um brasileirismo.

Esclareço que, sempre ou quase sempre, raso e todas as suas flexões, nas acepções acima registradas, se aplicam a grandes porções de água de pouca profundidade. Exs.: «piscina rasa», «lagoas rasas», «rio raso», «trechos rasos do rio».

Confirmais que realmente se trata de um brasileirismo? Se for afirmativa a vossa resposta, indago-vos sobre qual seria a palavra correspondente em Portugal.

A palavra baixo tem também o sentido de algo que tem pouca profundidade, algo que dá pé?

Como sempre, vos sou gratíssimo.

Resposta:

Tal como salienta o prezado consulente, os dicionários brasileiros Houaiss, Aurélio e Aulete Digital, por exemplo, referem que o substantivo masculino raso, utilizado com o significado de «local onde a água não é profunda, onde se pode alcançar o fundo com os pés», é considerado um brasileirismo, ex.: «Não sei nadar, prefiro ficar no raso.»

Efectivamente, confirma-se que, em nenhum dos dicionários portugueses de referência consultados, o nome raso é acolhido em sintonia com a acepção citada, ainda que se possa encontrar, muito raramente, num ou noutro sítio português da Internet, a expressão «raso do rio». A Infopédia, por exemplo, dá conta da existência do referido substantivo, mas apenas como sinónimo de «campo; planície» (definição também acolhida pelos referidos dicionários brasileiros).

O Novo Dicionário Aurélio vai ainda um pouco mais longe, notando que, mesmo enquanto adjectivo, com o significado «De pouca profundidade; não fundo», raso é igualmente considerado um brasileirismo, ex.: «lagoa rasa; prato raso». No entanto, o dicionário português Priberam, por exemplo, certifica a existência ...

Pergunta:

Ficaria grata se pudessem esclarecer-me quanto à existência de um substantivo associado ao verbo incorrer (vg., «incorrer em despesas»; «incorrer em responsabilidade criminal»). É certo falar em "incorrência" ou em "incursão"?

Junto as minhas felicitações pelo trabalho desenvolvido.

Resposta:

Na linha desta resposta de Fernando Venâncio, direi que o vocábulo incorrência, apesar de não ser acolhido por nenhum dos instrumentos linguísticos de referência consultados, se encontra construído em sintonia com as regras de formação de palavras portuguesas: verbo incorrer + sufixo -ência, que, de acordo com o Dicionário Houaiss, é um fecundo «formador de substantivos abstratos oriundos de verbos outros que da 1.ª conjugação [...] abrangência, absorvência, abstergência, abstinência, acedência, acrescência, aderência, etc.».

Já o segundo substantivo proposto pela prezada consulente, apesar das semelhanças sonoras, nada tem que ver (nem na etimologia, nem no sentido) com o verbo em análise, pois, na verdade, incursão significa «irrupção de uma força militarizada em território estrangeiro; investida, ataque, invasão» (Fontes: Dicionário Priberam, Dicionário Houaiss, Dicionário de Sinónimos e Antónimos do jornal Público), ao passo que incorrer quer dizer «cair, ficar compreendido, incluído, comprometido ou envolvido em (geralmente coisa ou situação desagradável); incidir; ficar sujeito a».

Deste modo, e se pusermos de parte o neologismo incorrência, que, volto a dizer, se encontra bem formado, não será fácil encontrarmos um nome existente que seja, digamos, 100% compatível com o sentido do verbo incorrer. No entanto, tendo em conta o contexto jurídico em análise, e os vários sentidos e sinónimos do referido verbo já aq...

Pergunta:

No meio acadêmico, há uma parcela de pessoas que pronunciam o nome da subfamília de leguminosas "Mimosoideae" como /mimozóidee/ e outra que pronuncia /mimosoídee/. O Dicionário Houaiss diz que em português a forma "mimosoídea" estaria mais correta que "mimosoidea" (/ói/), entretanto o sufixo -oidea, -oideo /ói/ é a forma mais usual.

Como tem um monte de palavras latinas que uso em minhas aulas, eu gostaria de saber qual das duas pronúncias seria a mais correta: /-óidea, -óideo/, ou /-oídea, -oídeo/?

Resposta:

De facto, tal como refere o prezado consulente, no Dicionário Houaiss, são acolhidas as duas formas citadas, isto é, mimosóidea e mimosoídea, sendo que, ao consultarmos a primeira, reparamos na seguinte nota: «forma não preferencial e mais usada que mimosoídea

Ainda no mesmo dicionário, é referido o seguinte em relação aos sufixos -oídea e -óidea: «ocorre em umas poucas palavras como afidóidea/afidoídea, cesalpinióidea/cesalpinoídea, filocladóidea/filocladoídea, hipóidea/hipoídea, lotóidea/lotoídea, mesóidea/mesoídea, da terminologia das ciências naturais, do sXIX em diante, terminação composta do elemento composto -oide + o sufixo -ea formador de substantivos femininos da terminologia referida; ver -óideo

Assim, ao pesquisarmos por -óideo ou -oídeo, constatamos que este é um elemento de composição pospositivo «em função sufixal equivalente a -oide, que, como -oideu, se depreende por uma sequência de aglutinações: -o- vogal de ligação grega + eîdos 'forma, aspecto, feição' + -eu, num caso, e -'eo (vê-los) neste caso; por sua formação, a tônica, de início, parece ter sido colocada, como seria teoricamente de presumir, sobre o -í-, donde o sufixo (composto) -oídeo, que parece ter sido não só o inicialmente seguido, senão que também o coerente com os casos em que a vogal antecedente não é -o- (como, p. ex., em alcmeídeo, amebiídeo, araneídio, ardeídeo, clapeídeo, coreídeo, danaídeo, diomedeídeo, escarabeídeo, escleídeo); embora, na dicionarização corrent...

Pergunta:

Sempre consulto o site sobre dúvidas diversas. Gostaria de agradecer pelas matérias.

Na Constituição brasileira, no artigo 5.º inciso XII, diz: «XII — é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.»

A pergunta é: na parte em que diz «(...) salvo, no último caso (...)» foi usada a preposição em + o artigo definido o. Pois bem, se essa locução se refere a todos os tipos de comunicações, ali mencionadas, que serão violadas por ordem judicial, não deveria vir apenas genericamente, ou seja, preposição em: «em último caso»? Pois, da maneira que está, dá o entendimento de se referir somente à comunicação telefônica.

Desde já, agradeço!

Resposta:

Da forma como o citado artigo se encontra redigido, parece-me que a expressão «no último caso», numa interpretação estritamente linguística, tem escopo apenas sobre «comunicações telefônicas», isto é, à partida, será inviolável o sigilo de: a) correspondência; b) comunicações telegráficas; c) dados, e d) comunicações telefónicas. Porém, no caso desta última alínea — comunicações telefónicas —, e apenas neste caso, a referida inviolabilidade poderá ser quebrada, ainda que unicamente «por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.».

Poderíamos, quando muito, numa perspectiva talvez um pouco mais lata, sustentados na utilização, em dois momentos do citado artigo, da conjunção coordenativa copulativa e, considerar esta uma estrutura não quadripartida, mas antes bipartida. Assim, teríamos, por um lado, «a correspondência e as comunicações telegráficas», e, por outro, «os dados e as comunicações telefônicas». Ora, nesta óptica, a expressão «no último caso» referir-se-ia não apenas às «comunicações telefônicas», mas também aos «dados», encarando-se estes dois itens como um só bloco, unificado, digamos assim, pela referida conjunção copulativa. Deste modo, e seguindo o raciocínio decorrente da perspectiva agora em análise, poderíamos parafrasear o excerto da seguinte forma: será inviolável o sigilo de: a) correspondência e comunicações telegráficas e de b) dados e comunicações telefónicas. Contudo, no que se refere aos itens constantes desta última alínea — isto é, «dados e comunicações telefônicas» —, a referida inviolabilidade poderá ser quebrada, ainda que apenas «por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.».