Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber a explicação do provérbio «Quem vê cara não vê coração».

Resposta:

Para se compreender bem o provérbio «Quem vê caras não vê corações», importa analisar o que significam a cara e o coração, as duas palavras-chave desta frase.

A cara é uma parte do corpo humano que todos podem ver, que tem uma determinada aparência conferida pelo conjunto dos seus elementos (olhos, boca, nariz, maçãs do rosto, tom de pele, etc.) e que identifica o indivíduo. Além disso, a cara é um meio privilegiado de manifestação de sentimentos, estados de espírito, pensamentos: os olhos, as sobrancelhas, a testa, a boca podem assumir uma série de posições, realizar toda uma mímica reveladora do que a pessoa é, sente ou pensa. A própria boca, por si só, claro, também verbaliza o pensamento. Ora, apesar de a cara identificar o indivíduo, ela pode ser alterada, retocada, pintada e, por outro lado, uma cara fisicamente bonita não indicia forçosamente que a pessoa seja bela interiormente, ou seja, tenha bons sentimentos. Por outro lado, pela cara pode manifestar-se um sentimento que verdadeiramente não exista: há quem sorria e esteja triste; há quem assuma um ar sereno, apesar de estar zangado.

O coração é um órgão que está no interior do corpo humano, não sendo portanto visível (a não ser que estejamos numa mesa de operações...). É um órgão essencial, tradicionalmente associado à vida e aos sentimentos, à maneira de ser.

No provérbio pretende dizer-se que quem vê caras vê apenas o exterior, vê apenas a aparência, vê apenas o que está à mostra ou lhe querem mostrar, mas não vê corações, ou seja, não sabe o que a pessoa realmente pensa ou sente, não sabe, por exemplo, se a pessoa tem uma doença, pode não se aperceber até da verdadeira natureza, da verdadeira maneira de ser de quem está à sua frente.

Este provérbio pode ser utilizado em diversas situações. Dois exemplos:

Pergunta:

No programa Cuidado com a Língua que foi para o ar no dia 18 de Maio (se não estou em erro), na secção em que alertam para erros verificados em publicidade e afins, referiram, a propósito do DVD Sei o Que Fizestes no Verão Passado, que a expressão "fizestes" não pode ser utilizada «nunca, jamais, em tempo algum». Mas então... como se conjuga a 2.ª pessoa do plural do verbo fazer no pretérito perfeito? Não é «vós fizestes»? Ora, quem profere este título é o misterioso assassino, dirigindo-se a um grupo de jovens: eu sei o que (vós, jovens) fizestes o Verão passado! Incorrecto seria o muito comum "fizestéis"! Ou será que está algo a falhar no meu raciocínio (o que admito desde já)?

Resposta:

O consulente tem toda a razão. Fizeste («tu fizeste») é a segunda pessoa do singular do pretérito perfeito do verbo fazer; fizestes («vós fizestes») é a segunda pessoa do plural.

No programa televisivo, a correcção foi feita por se ter considerado que estava a ser utilizada a segunda pessoa do singular (tu), e não a segunda do plural (vós).

Pergunta:

Casamento é da família da palavra casa?

Resposta:

Casamento é, sim, da família da palavra casa.

Casamento significa o acto ou efeito de casar: é um substantivo derivado do verbo casar  (casar + mento). Por sua vez, casar é um verbo formado do substantivo casa, pois o acto do matrimónio faz com que se constitua uma nova casa.

Pergunta:

Podiam dizer-me que tipo de orações são estas?

«Dizia-se abertamente que o sultão não receberia ninguém, nem mesmo um pobre coitado que ali tivesse acabado de chegar num barco.»

«Deu uma ordem incompreensível ao filho que o acompanhava.»

Obrigada.

Resposta:

No primeiro período existem três orações:

1.ª: «Dizia-se abertamente» — oração principal subordinante;

2.ª: «que o sultão não receberia ninguém, nem mesmo um pobre coitado» — oração subordinada integrante ou completiva;

3.ª: «que ali tivesse acabado de chegar num barco» — oração subordinada relativa.

No segundo período existem duas orações:

1.ª: «Deu uma ordem incompreensível ao filho» — oração principal subordinante;

2.ª: «que o acompanhava» — oração subordinada relativa.

Pergunta:

A TSF e o Diário de Notícias têm uma entrevista conjunta que intitulam (e escrevem, conforme leio no jornal do dia 20 de Janeiro p.p.) «Palavra d`honra».

Independentemente de o apóstrofo estar abolido há muito da nossa ortografia (desde quando, já agora?), não se usa(va) apenas entre vogais?

Muito obrigado pelo esclarecimento.

Resposta:

É admissível essa utilização do apóstrofo.

O apóstrofo continua a usar-se em algumas palavras compostas, quando se dá a elisão do e da preposição de no interior dessas palavras. Exemplos: borda-d`água (espécie de calendário popular), copo-d`água (refeição oferecida em casamentos), mãe-d`água (nascente ou reservatório de água), estrela-d`alva (nome vulgar de uma árvore que tem aplicação na indústria têxtil), pau-d`alho (árvore medicinal são-tomense).

Como se pode ver, apesar de, na formação de cada uma destas palavras, ter entrado de algum modo o significado das palavras que a compõem, a palavra composta tem uma especificidade própria, sendo o seu significado diferente do da soma do significado particular de cada uma das palavras que a constituem: por exemplo, um copo-d`água é diferente de um copo de água.

Quanto ao termo palavra d`honra, referido no Diário de Notícias, trata-se do nome de um programa semanal da TSF, que consiste numa entrevista com um protagonista central da vida política. Como nome de programa, é admissível esta construção. Palavra d`honra vai, assim, como as palavras compostas acima, ter um significado diferente do termo palavra de honra. Para a distinguir deste termo e lhe conferir a sua própria individualidade como nome próprio, é admissível o uso do apóstrofo.