Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Existe a palavra lisonjeamento?


Resposta:

Lisonjeamento não se encontra registado em nenhum dicionário nem nos vocabulários ortográficos, o que significa que essa forma não é considerada legítima.

Lisonja, lisonjaria e lisonjeria (em desuso, da linguagem de Gil Vicente) são as três formas atestadas como substantivos/nomes que designam «ato ou efeito lisonjear (ou lisonjar)» (Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo, 1986).

Sobre a origem de lisonja, José Pedro Machado diz-nos que «talvez se trate de um castelhanismo, isto é, que deriva do espanhol lisonja» (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa).

Como adjetivos, encontram-se registadas duas palavras: lisonjeador e lisonjeiro, de que se formou o advérbio de modo lisonjeiramente.

Pergunta:

Estava a ler um texto sobre o duque de Ávila e Bolama, quando me deparei com a seguinte frase, que transcrevo: «era um terreno... com 5 alqueires de vinha e 2 alqueires de "terra de pão", lagar, 5 habitações e cozinha...»

Não tenho a certeza do que querem dizer com «terra de pão», mas fico com a ideia de que será terra para a cultura de cereais. Chamo a atenção que este texto está relacionado com a ilha do Faial, nos Açores. No entanto, gostaria, caso seja possível, que me esclarecessem esta dúvida.

Resposta:

De facto, «terra de pão» é uma expressão açoriana, como se pode comprovar através do Dicionário de Falares dos Açores (Coimbra, Almedina, 2008), de J. M. Soares de Barcelos, que nos esclarece sobre o seu significado: «terreno destinado à cultura de trigo.»

Não há dúvida de que o pão é, geralmente, feito do trigo, o que nos poderia levar a inferir o sentido da expressão, tal como o consulente sugere. Mas é interessante o facto de se condensar numa expressão a terra e o produto resultante do que essa terra produziu — terra de trigo > terra de farinha> terra de pão.

Pergunta:

Li os comentários sobre a palavra soprano e entendi, mas é tão comum a gente ouvir «a soprana» (referente a mulher), que eu fico na dúvida. Não será que esta palavra se tornou integridade da língua por ser de uso excessivo?

Resposta:

A palavra soprano é um substantivo masculino e feminino, isto é, é um nome de dois géneros, usado para designar o cantor e a cantora com uma voz aguda, tendo unicamente o artigo/determinante como marca distintiva do sexo: «o soprano»; «a soprano».

Apesar de a consulente verificar o uso de uma outra forma, a realidade é que as gramáticas (as antigas e as mais recentes) portuguesas e brasileiras, os dicionários e os recentes vocabulários ortográficos (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras; Vocabulário Ortográfico do Português, da responsabilidade do ILTEC) registam só a forma convencionada: soprano, não reconhecendo o termo "soprana".

Nota: O Portal da Língua Portuguesa, outro recurso disponível do IlTEC, regista o seguinte: «soprano: nome masculino; plural: sopranos; forma feminina: soprano

Pergunta:

A palavra recetividade pode ter dupla grafia (receptividade)?

Resposta:

O Vocabulário Ortográfico do Português, da responsabilidade do ILTEC, regista uma única forma para o português europeu (variante luso-africana):  recetividade, assinalando a particularidade de que esta grafia se restringe ao espaço português.

Indica, também, a variante receptividade  para o português do Brasil: «variante AO: receptividade (apenas no Brasil)».

Nota: a atestação das duas variantes (PE e PB) deve-se ao respeito pela diferentes pronúncias da palavra, pois em Portugal o p da antiga grafia é uma consoante muda, enquanto no Brasil é pronunciada, razão pela qual o p se mantém neste país.

Pergunta:

Diz-se ter uma «cara seráfica», ou «cara ceráfica»?

Resposta:

A forma correta é «ter uma cara seráfica». Seráfica é a forma feminina do adjetivo seráfico (do latim seraphīcu-), «relativo a serafins» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010). Por isso, esta palavra se escreve com s e não com c, pois serafim deriva do hebraico seraphum, plural de saraph, donde resultou a palavra latina Seraphin, «anjo da primeira hierarquia» (idem).

A dúvida do consulente deve-se, decerto, à associação a cera, talvez devido ao facto de um rosto seráfico ter o tom pálido, da cor da cera. Mas o adjetivo do nome/substantivo cera é ceráceo (de cera + -áceo), significando «que tem aspeto ou consistência de cera» (idem).

Como a pronúncia da primeira sílaba é a mesma, quer seja iniciada por se- ou ce-, é natural que haja a dúvida a nível da ortografia. Mas não nos podemos esquecer de que grande parte da nossa ortografia é etimológica, tendo como base a grafia da palavra de que deriva. Portanto, quando se faz referência ao ar angélico de alguém, remete-se para a grafia de Serafim, seráfico.