Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Tal operação, além de viciosa politicamente, é de fundo evidentemente cristão», a expressão «de fundo» é uma locução?

E a concordância correta é mesmo esta — «de fundo evidentemente cristão» — ou deve/pode ser assim: «Tal operação é de fundo evidentemente cristã»?

Resposta:

A dúvida da consulente deve-se ao facto de se tratar de uma frase cujo predicado é nominal, o que implica a presença do predicativo do sujeito, que, por sua vez, se refere ao sujeito, razão pela qual se questiona sobre a legitimidade da concordância do adjetivo cristão.

Ora, se o predicativo do sujeito fosse constituído unicamente por esse adjetivo (predicador de natureza adjetival), não haveria dúvida de que concordaria em género e em número com o sujeito: 

«Tal operação, além de viciosa politicamente, é cristã.»

No entanto, não é esse o caso da frase que nos apresenta, pois aí o constituinte com a relação gramatical de predicativo do sujeito é uma expressão nominal qualitativa, razão pela qual não concorda com o sujeito, pois a concordância faz-se com os elementos do predicativo, no interior do constituinte. Por isso, relativamente ao adjetivo cristão, a sua flexão depende do substantivo a que se refere, pois é de regra que «o adjetivo assume o género do substantivo» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 253). Ora, como fundo é um substantivo masculino, o adjetivo deve ter a forma masculina, concordando como substantivo que qualifica: fundo cristão:

«Tal operação, além de viciosa politicamente, é de fundo evidentemente cristão.»

A expressão «de fundo», em que ocorre a preposição de a preceder o nome/substantivo fundo (com o sentido de «natureza, caráter, cariz»), não configura um caso de locução adverbial1, pois não é usado com o valor de advérbio.

Trata-se de uma expressão em que a prepos...

Pergunta:

Como classificar as expressões «não só... mas também» e «não só... como também», tradicionalmente classificadas como locuções conjuncionais coordenativas copulativas?

Resposta:

Integradas nos conetores coordenativos, as expressões «não só... como (também)» e «não só... mas também» são classificadas como locuções conjuncionais correlativas por Gabriela Matos, no capítulo 14 da Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Caminho, 2003, p. 564), por terem a particularidade de serem «tipicamente binárias», pois apresentam dois membros coordenados na estrutura de coordenação.

Inserem-se, portanto, no grupo das «locuções conjuncionais que assumem a forma de uma expressão descontínua, as chamadas conjunções correlativas [de que] são exemplo expressões coordenativas como: não só... como, não só... mas também, tanto... como, ou... ou, ora... ora, nem... nem, quer... quer» (idem, p. 563). Estas, por sua vez, distinguem-se das conjunções simples (e, nem, ou, mas) que ocorrem isoladamente.

É de referir, também, que as locuções conjuncionais correlativas «não só...mas também, não só...como e tanto...como» são aditivas ou copulativas, enquanto «nem... nem, ou... ou, ora... ora e quer... quer» são alternativas ou disjuntivas. No entanto, quando estabelecem a coordenação de dois sintagmas nominais no singular, estas expressões têm em comum o facto de «desencadearem a concordância verbal plural» (idem, p. 586):

Não só o livro mas também/como a revista chegaram hoje pelo correio.

Nem eu nem tu temos muita coisa em comum.

Naturalmente, enquanto locuções correlativas copulativas/aditivas, as expressões não só...mas também, nã...

Pergunta:

Relativamente ao gel que se colocar em contacto com a pele para utilizar um aparelho de ultra-som ou um Eco-Doppler, podemos chamar:

– Gel ultrasónico?

– Gel ultrassónico?

– Gel ultra-sónico?

Resposta:

A forma correta é aglutinada1, o que implica a presença de dois ss a ligar o prefixo ultra- ao adjetivo sónico ultrassónico —, conforme se encontra registado no Vocabulário Ortográfico do Português, da responsabilidade do ILTEC.

A repetição do s torna-se necessária para que a grafia reproduza a pronúncia que respeite o som original de sónico. Se se escrevesse com um só s, como ocorreria entre vogais, essa consoante teria o valor de z.

Não é um caso de emprego do hífen, porque o segundo elemento não começa por h nem por a (vogal igual à com que termina o prefixo).

Nota: Sobre a grafia das palavras formadas com o prefixo ultra-, a Base XVI (Do hífen na formações por prefixação, recomposição e sufixação) do Acordo Ortográfico de 1990 prevê o seguinte: «Nas formações com prefixos (como, por exemplo: ante-, anti-, circum-, co-, contra-, entre-, extra-, hiper-, infra-

Pergunta:

Pode-me indicar se a seguinte expressão está correta: «Quando os políticos abusam, o povo levanta-se»?

Ou se deve ser escrita assim: «Quando os políticos abusam, o povo se levanta»?

Resposta:

«Quando os políticos abusam, o povo levanta-se» é a forma correta.

Repare-se que não haveria dúvida se se alterasse a ordem da frase:

«O povo levanta-se, quando os políticos abusam.»

É de referir também que, se, em vez de «o povo», o sujeito fosse «toda a gente» ou «todos» (com valor idêntico a «o povo»), isso implicaria a colocação do pronome antes do verbo, pois «a língua portuguesa tende à próclise pronominal, quando o sujeito da oração, anteposto ao verbo, contém o numeral ambos ou algum dos pronomes ou determinantes indefinidos (todo, tudo, alguém, outro, qualquer, etc.)» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 313):

«Quando os políticos abusam, toda a gente se levanta.»

«Quando os políticos abusam, todos se levantam.»

Pergunta:

Alguém já disse, certa vez: «Eu fi-lo porque qui-lo.» Acertou?

Se não, porquê?

Resposta:

Se seguir com rigor as regras da colocação dos pronomes, que prevê a próclise (colocação do pronome antes do verbo) «nas orações subordinadas desenvolvidas» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, pp. 311-312), e tendo-se em conta que a segunda oração é subordinada causal («porque...»), verificamos que a forma correta da frase é:

«Eu fi-lo porque o quis.»

Nota: As formas fi-lo e qui-lo, embora nos pareçam estranhas devido ao modo como soam, são gramaticais. Por exemplo:

«Eu fiz este trabalho» = «eu fi-lo»

«Eu quis este trabalho» = «eu qui-lo».

Por isso, não é incorreta uma frase como «Fi-lo e qui-lo».