Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em Angola é usual distinguir viagem de deslocação. Usamos deslocação para viagens internas (dentro do país) e viagem para o exterior (fora do país). Poderemos dizer que está certo, ou é somente uma convenção nossa?

Obrigado.

Resposta:

Não há dúvida de que toda a viagem — seja quer no interior de um país, quer para o exterior — implica sempre uma deslocação. No entanto, nem toda a deslocação corresponde a uma viagem, porque se pode referir tanto a um percurso longo como a um relativamente curto, o que gera bastantes dúvidas a muitos falantes da língua portuguesa.

Exemplo de que essa questão não se restringe ao universo linguístico angolano é um texto em que a autora expõe as circunstâncias a que se referem as «[d]espesas como as de “deslocação e estada”, “despesas de representação”, “ajudas de custo” e “compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal”», o que a leva a ser bastante precisa ao explicitar que:

Deslocações e estadas — São despesas suportadas quando se estiver perante encargos com transporte, estadas, refeições suportadas com trabalhadores (...) por motivos de deslocação destes fora do local de trabalho (...). Este tipo de despesa compreende os gastos de alojamento e viagem (hotel, avião, comboio) efectuados por trabalhadores da empresa, ao serviço da mesma, fora do local de trabalho. (...).

Por sua vez, relativamente à «[c]ompensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal»: «[...] apenas a entidade patronal pode atribuir ajudas de custo e subsídio de transporte (quilómetros percorridos em viatura própria). […].Estas despesas […]  estão condicionadas na sua aceitabilidade fiscal à apresentação do referido mapa. […].»

A partir do exposto, apercebemo-nos de que, de facto, o termo deslocação tem um sentido bastante lato, abrangendo d...

Pergunta:

Gostaria de saber se na expressão seguinte se trata de uma metáfora ou de uma hipérbole:

«O sol baixara um pouco e estendia agora uma estrada de lume pelas águas.»

Obrigada.

Resposta:

Com a expressão «uma estrada de lume pelas águas», o sujeito de enunciação faz a fusão de duas realidades — a do sol e a da estrada de lume — que se assemelham (sol = fogo), sem colocar o termo de ligação/comparação como (a luz do sol, os raios reflectiam-se nas águas como se fossem uma estrada de lume), recriando as tonalidades das cores fortes do fogo (vermelho, cor de laranja e amarelo) que se espalham sobre as águas, tomando as formas de uma estrada. Trata-se, portanto, de uma metáfora que aqui sobressai como figura mais evidente, deixando no leitor a imagem da luz e do calor que contrastam com água. Poder-se-ia dizer, por isso, que nessa frase se insinua, também, a presença da sinestesia, uma vez que a esta imagem se associam percepções sensoriais (tal como a impressão visual das cores e do misto de sensações de calor — do lume — e de frio — das águas), acentuando a intensidade das cores projectadas em contraste com o azul da água.
 
Apesar de poder parecer uma descrição exagerada de uma determinada paisagem, a realidade é que com esta frase conseguimos visualizar (e até sentir) a imagem que o enunciador nos apresenta. Por isso, não é um caso de hipérbole.

Pergunta:

Celso Cunha, Lindley Cintra, Ulisses Infante e outros admitem a possibilidade da construção «mais grande do que», como, por exemplo, em «este país é mais grande que equilibrado». Uma colega de trabalho, em reunião do Colegiado, diante de pais de alunos e de uma de minhas alunas do terceiro ano do ensino médio, desautorizou-me afirmando a impossibilidade da construção. Estou segura, mas desejaria o aval de uma instituição séria além é claro, de minhas referências gramaticais.

Antecipadamente, agradeço.

Resposta:

O adjectivo grande faz parte do reduzido grupo de adjectivos (bom, mau, pequeno) que formam os comparativos e os superlativos de forma irregular (são, por isso, também designados de anómalos), o que não significa que só as formas irregulares possam ser usadas, pois há situações particulares em que se prevê o recurso à regra geral da formação dos comparativos.

Decerto devido à complexidade de determinados casos, este tema tem sido objecto de análise de gramáticos e de linguistas. Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984), tal como afirma a consulente, prevêem  a utilização das formas irregulares, mas também das regulares, do comparativo de superioridade dos adjectivos bom, mau e grande, como se pode verificar através das seguintes  citações (idem, pág. 262):

Quando se compara a qualidade de dois seres, não se deve dizer mais bom, mais mau e mais grande; e sim: melhor, pior, maior. Possível é, no entanto, usar as formas analíticas desses adjectivos quando se confrontam duas qualidades do mesmo ser:

Ele foi mais mau do que desgraçado.
Ele é bom e inteligente; mais bom do que inteligente.

Portanto, pelo exposto, concluímos que é possível a forma «mais grande do que» quando se confrontam duas qualidades do mesmo ser. Para fundamentar esta tese, teria sido importante que tivesse sido apresentado algum exemplo, a par das outras duas situações apontadas, mas a verdade é que a indicação de tal possibilidade (e conselho) foi registada.

Sem desprimor do que foi dito, é de referir, também, que essa posição não ...

Pergunta:

As palavras fusível, couve-flor e telefone são substantivos derivados?

Resposta:

A questão que nos traz remete para a formação de palavras, em que sobressaem dois processos (por serem os mais comuns): o da derivação e o da composição.

Das três palavras que nos apresentou, uma é composta (couve-flor) e as outras são derivadas (fusível e telefone), conclusões a que chegámos a partir da análise de cada um dos casos, que passamos a expor:

Couve-flor é, sem qualquer dúvida, uma palavra composta (e não derivada), porque é formada a partir de duas palavras que pertencem ao léxico — couve e flor. Verifica-se, então, que é fruto de «a junção de dois radicais identificáveis pelo falante numa unidade nova de significado único e constante» (Evanildo Bechara, Gramática Escolar da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Ed. Lucerna, 2002, p. 506). Trata-se, portanto, de um exemplo de composição morfossintáctica (designação usada pelo Dicionário Terminológico, adoptado para o ensino em Portugal), pois a palavra couve-flor formou-se pelo «processo de composição que associa duas ou mais palavras, cuja estrutura depende da relação sintáctica e semântica entre os seus membros, o que tem consequências para a forma como são flexionados em número» (DT), tal como as palavras surdo-mudo, guarda-chuva, via láctea.

Relativamente às palavras formadas por derivação — processo em que as palavras «se formam de outras  palavras da língua, mediante o acréscimo ao seu radical de um pref...

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra judicial pertence à família da palavra justiça.

Antecipadamente grato.

Resposta:

No âmbito da tradição de ensino da gramática no ensino básico e no secundário de Portugal, uma família de palavras era, conforme definição de J. M. Nunes de Figueiredo e A. Gomes Ferreira, no Compêndio de Gramática Portuguesa (Porto Editora, 1976, pág. 316), um conjunto de palavras que se formam de uma mesma palavra primitiva: dizia-se assim que à família de palavras de justo, pertenciam injusto, ajustar, reajustar, justiça. Além disso, estes autores consideravam que a identificação de uma família de palavras abrangia também o vocabulário que «tem um elemento comum, geralmente monossilábico, chamado raiz: amar, amigo, amizade, raiz: am-», admitindo a forma da raiz algumas variações fónicas, como no caso do conjunto constituído por justo, injusto, ajustar, reajustar, justiça, etc., a qual inclui ainda jura e juramento, «visto que há nelas a raiz jus-, embora o s > r» (ibidem).

Na actualidade, o Dicionário Terminológico, criado para apoio do estudo da gramática no ensino básico e no secundário, não se afasta muito da perspectiva anterior, quando define família de palavras como «conjunto das palavras formadas por derivação ou composição a partir de um radical comum», dando como exemplo o conjunto formado por mar, maré, marítimo, marinheiro, marina, que partilham o mesmo radical, mar-.

Tendo em conta as definições apontadas, que são, de certo modo, convergentes, diga-se que os vocábulos j