Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se a figura de estilo presente nestes versos é a anástrofe ou o hipérbato:

«Rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas»

Resposta:

Tanto a anástrofe como o hipérbato e o anacoluto são, segundo João David Pinto Correia, em «A expressividade na fala e na escrita» (in Falar melhor, Escrever melhor, 1.ª ed., Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, 1991, pp. 497-497), figuras de expressividade (de retórica ou de estilo), incluídas nas «figuras de construção por mudança (ou deslocação), caraterizando-se o hipérbato por uma «mudança violenta na ordem directa da palavras numa frase»: «Contra o tão raro em gente Lusitano» (Os Lusíadas, III, 34).

Por sua vez, Carlos Ceia, no E-Dicionário de Termos Literários, define a anástrofe como «inversão, geralmente violenta, da ordem natural das palavras numa frase, para obter determinado efeito estilístico», razão pela qual considera que «a anástrofe partilha com o hipérbato apenas o movimento de troca da ordem normal dos termos numa frase. Tem por isso maior número de possibilidades de aplicação». Acrescenta, também, que «a anástrofe, se for muito violenta, toma o nome de sínquise, figura que ocorre com frequência em Camões, contribuindo para afinar o estilo do poeta: “A ira com que súbito alterado / O coração dos Deuses foi num ponto” (Os Lusíadas, VI, 34)».

Por outro lado, e apesar de afirmarem que, «em sentido corrente, hipérbato é termo genérico para designar toda a inversão da ordem natural das palavras na oração, ou da ordem das orações no período, com finalidade expressiva», Cunha e Cintra, quando se referem às figuras da sintaxe, na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Sá da Costa, 2001, pp. 613-627), distinguem hipérbato [«do grego hyperbaton, “inversão”, “transposição”» (idem, p. 620)] de anátrofe [«do grego anastrophé, “mudança de posição”, “inversão”, “transposição”»...

Pergunta:

Qual o aumentativo da palavra fogueira e o aumentativo da palavra castanha (fruto)?

Obrigado.

Resposta:

Não encontrámos nenhum registo de aumentativos de fogueira e de castanha na bibliografia consultada.

No entanto, sabemos que é comum usar-se a forma analítica do aumentativo para qualquer palavra, com a junção de um adjetivo que indique aumento, como grande ou enorme: uma grande/enorme fogueira; uma castanha grande/enorme.

De qualquer modo, poderemos também recorrer ao processo de formação do aumentativo (sinteticamente) previsto pelos gramáticos, que consiste no emprego dos sufixos aumentativos especiais usados em português: -ão, -aço, -aça, -uça, -ázio, -anzil, -aréu, -arra, -orra, -astro, -az, etc. Teremos, assim, várias formas de aumentativo, como, por exemplo:

Fogueira: fogueiraça, fogueirão.

Castanha: castanhaça, castanhorra.

Trata-se, portanto, de aumentativos que não se encontram dicionarizados nem estabilizados, que podem ocorrer em situações informais, em casos de uso da linguagem familiar e corrente, para se traduzir uma situação em que se realce, pela positiva ou pela negativa, a ideia/imagem de uma determinada fogueira ou de uma castanha.

Nota: Importa referir que as palavras fogaréu e fogaracho (que se poderia pensar que se trataria de aumentativos de fogueira) são sinónimas de «fogueira, fogo, lume», apesar de parecerem conter sufixos aumentativos.

Por sua vez, os termos castanhada, castanhal e castanhedo são coletivos de castanha

Pergunta:

No trecho: «Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa.»

O emprego do pronome demonstrativo esta justifica-se porque o pronome está em referência a um:

a) lugar em que o falante está.

b) tempo futuro, mas bem próximo.

c) pensamento que se vai anunciar.

d) ser que se encontra perto do falante.

e) termo imediatamente anterior, mencionado no discurso.

Resposta:

A resposta correta é a c) [pensamento que se vai anunciar], uma vez que o pronome esta, na frase de Clarice Lispector «Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa» é usado pela escritora como «a forma para chamar a atenção sobre aquilo que vai dizer».

Repare-se que os gramáticos Cunha e Cintra nos alertam precisamente para o emprego dos pronomes este, esta e isto como «a forma de que nos servimos para chamar a atenção sobre aquilo que dissemos ou que vamos dizer» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2001, p. 332).

Pergunta:

Qual a forma correcta?

«A criança está no Sol», ou «A criança está ao Sol»?

Resposta:

«A criança está ao sol» (sol com minúscula) é a forma correta da frase.

A expressão «ao sol» designa, precisamente, «exposto(a) aos raios solares» (Énio Ramalho, Dicionário Estrutural Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, Porto, Lello & Irmão), significado que corresponde ao sentido da frase.

Repare-se que é comum usar-se essa expressão em estruturas como «andar ao sol» e «ficar ao sol» (= «expor-se ao sol»), tal como se pode verificar nos seguintes exemplos:

«Não deves andar ao sol, que estás muito constipado.»

«Na praia, ela fica muito tempo ao sol.»

Nota: «Estar em» [«estar na janela»] e «estar a» [«estar à janela»] podem usar-se indiscriminadamente sempre que correspondam a «encontrar-se num lugar ou situação» (Dicionário Gramatical dos Verbos Portugueses, da Texto Editores, 2007). No entanto, não é este o caso das frases apresentadas, pois não se quer dizer, decerto, que a criança se encontra no sol.

Pergunta:

«Que se farta» é português correcto?

«O Zé disse asneiras que se farta contra os colegas», ou «O Zé disse asneiras com fartura contra os colegas»?

E já agora: «contra»/«aos»: «O Zé disse asneiras que se farta contra os colegas», ou «O Zé disse asneiras que se farta aos colegas»?

Estão ambas as frases correctas («contra»/«aos»)?

Resposta:

1. A expressão «que se farta» significa «muito, imenso» e é própria do registo informal do português europeu, muito embora possa ocorrer em textos jornalísticos de tom mais familiar e até em textos literários. Trata-se de uma oração consecutiva que se comporta como expressão semifixa e, como tal, tem entrada, por exemplo, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, onde figura enquanto subentrada de fartar. Esta oração consecutiva/expressão tem um sujeito com o mesmo referente que o da oração subordinante (no caso da frase apresentada pelo consulente). Do ponto de vista temporal e da flexão em pessoa, a expressão em apreço deve concordar com o verbo da oração subordinante:

(1) «O Zé disse asneiras que se fartou contra os colegas.»

No entanto, não é infrequente que, coloquialmente, a expressão chegue a cristalizar-se completamente sem que se observe a concordância temporal e pessoal, tal como sucede na frase em questão — mas trata-se de uma expressão que a norma não aceita:

(2) «O Zé disse asneiras que se farta contra os colegas.»

Um construção alternativa é usar o verbo fartar-se seguido de preposição e infinitivo, com o significado de «fazer com repetidas vezes ou com intensidade»: «Fartou-se de correr para apanhar o autocarro» (idem); «fartou-se de dizer asneiras contra os colegas». Há ainda outras construções quer com o verbo fartar (exemplo 3) quer com substantivos dele derivados (exemplos 4 e 5), como expressões fixas para o discurso familiar e registos informais:

(3) «O Zé disse asneiras até fartar/se fartar aos colegas.»

(4) «O Zé disse asneiras à farta aos colegas.»

(5) «O Zé disse asneiras com fartu...