Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da frase «Você, leitor, quer passar-se?», que eu vi em http://pauloquerido.pt/tecnologia/voce-leitor-quer-passar-se/. O responsável pelo site tentou explicar com:

«Dativo, está a ver o inglês freak out? É nesse sentido.» E eu continuei sem entender nada. Não sei se ele se refere a uma expressão inglesa ou a algum programa com o mesmo nome. Também a expressão «... está a ver» não faz muito sentido. Seria: «está(s) vendo/assistindo»?

Muito obrigado pela ajuda.

Resposta:

O verbo passar-se, enquanto pronominal, tem, entre outros, o sentido de «perder o juízo, endoidecer». Em sentido figurado, e em contextos como o que indica, tem o sentido de «perder a cabeça, ficar descontrolado, sem reacção». Pode ter um sentido mais negativo ou mais positivo, dependendo do contexto em que o verbo ocorre, ou seja, uma pessoa pode passar-se de entusiasmo, quando lhe acontece uma coisa muito boa de que não estava à espera, ou passar-se de medo ou de raiva, quando lhe acontece algo mau de que também não estava à espera. Às vezes uma pessoa passa-se porque, pura e simplesmente, não consegue reagir de forma adequada perante uma dada situação. A sua dúvida leva-me a pensar que este sentido seja mais característico de Portugal. Efectivamente, nos dicionários editados no Brasil que consultei, não vi este sentido descrito.

A expressão «está a ver» é, também, característica do português europeu. Corresponde a uma das formas de fazer a perifrástica, que no Brasil se faz, sobretudo, com o verbo auxiliar, mais gerúndio (está vendo). Nós por cá dizemos a mesma coisa mas com o verbo auxiliar, mais a preposição a, mais o verbo no infinitivo (está a ver).

Pergunta:

Numa receita culinária, qual das expressões é a correcta?

«Juntar os legumes e deixar cozinhar um pouco», ou «Juntar os legumes e deixar a cozinhar um pouco»? Ou estão ambas correctas?

Resposta:

No contexto que refere, o mais adequado é «deixar cozinhar» (embora, pessoalmente, prefira «deixar cozer»…)

A expressão «deixar a cozinhar» adapta-se, a meu ver, a situações em que se coloca algo ao lume e se vai fazer outra coisa entretanto, do tipo: «Deixo os legumes a cozinhar/cozer e vou atender o telefone.»

Bom trabalho!

Pergunta:

O aumentativo e o diminutivo das palavras em alguns casos são muito controversos.

O que consideram correcto em relação a "palavrona" como aumentativo de palavra? Eu considero correcto "palavrão", mas fico em dúvida em relação à primeira.

Resposta:

Cunha e Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, página 91, referem que o sufixo aumentativo -ão se realiza no masculino mesmo quando o nome a que se associa é feminino. Referem ainda que só nos adjectivos é comum a ocorrência dos dois géneros. Dão como exemplo chorão-chorona e solteirão-solteirona.

Apesar disso, há nomes em que ocorre, pontualmente, o feminino do aumentativo, como por exemplo no caso de mulher, que tem três aumentativos: mulheraça, mulherão e, mais raro, mulherona. Note-se, no entanto, que o sufixo -ona não ocorre como distintivo de género, como acontece nos adjectivos.

No caso de palavra, por analogia com mulher, poderá, em contextos informais, aceitar-se o aumentativo palavrona, que, todavia, não está, à data em que este texto é feito, identificado como palavra do português na Base de Dados Morfológica de Português, Mordebe.

No caso de palavrão, embora a acepção mais comum nos conduza para o sentido de «palavra obscena», quando devidamente contextualizado parece-me o aumentativo certo, se quisermos fugir à expressão analítica «palavra grande» ou outra equivalente.

Pergunta:

Enquanto estudante de tradução, gostaria de saber se a expressão «estou barado!» é já aceite na escrita portuguesa, ou se permanece ainda uma marca do discurso oral.

Resposta:

A expressão «estar/ficar varado», no sentido de «estar/ficar fortemente surpreendido ou impressionado com algo», ocorre em textos de vários autores. Cito alguns com exemplos extraídos do Corpus do Português:

«Eu cá até pensei: bem, lá fizeram as pazes. Nisto: pum, pum. Dois tiros. Fiquei varado. Até caí com o susto.» Alberto Lopes, A Última Estação

«Numa dessas noites, eu saía de uma confeitaria do Rossio, de comprar trouxas-de-ovos para levar à minha Adélia, quando encontrei o Doutor Margaride, que me anunciou, depois do seu abraço paternal, que ia São Carlos ver o Profeta. – E você, vejo-o de casaca, naturalmente também vem.. Fiquei varado.» Eça de Queirós, A Relíquia

«Tenha compaixão.
– Passa fora, gatuno! O que tu querias nesse espinhaço bem sei eu.
Ele recuou aterrado, convulso. E varado por aquela violência ficou soluçando no meio da rua solitária.» Fialho de Almeida, A Ruiva

«E para a outra vez não é só ela quem prova da "canja", são os dois! Os dois eram a esbofeteada e o Antunes. O Antunes estava varado. Não percebia patavina.» José de Almada Negreiros, Nome de Guerra

A expressão «estar/ficar varado» surge a primeira vez no séc. XV, com o sentido de «ser trespassado por lança», ou para referir um navio que esteja em seco, na praia. Destas duas acepções vir-lhe-ão os sentidos abstractos que lhe atribuímos de «ficar sem acção, sem capacidade de reagir, imobilizado».

É, pois, uma expressão que, sem ser muito utilizada, poderá ocorrer aqui ...

Pergunta:

É possível a separação do verbo e seus objetos?

Minha dúvida originou-se ao resolver o seguinte item de uma prova:

A questão dizia ser possível inserir sinal de dois-pontos depois de foram preservando a correção gramatical e a coerência textual.

O gabarito afirmava ser possível.

Eis o trecho:

«Os instrumentos utilizados foram a política de preços de energia, a política tecnológica e a política de incentivos e subsídios, além das medidas de restrição ao consumo através do estabelecimento de quotas às empresas do setor industrial.»

Isso se procede? Por quê?

Resposta:

Os dois-pontos indicam, por exemplo, o início de uma enumeração e, nesse caso, tornam-se importantes na coesão textual, uma vez que indicam ao leitor que vão ocorrer diversos elementos de valor idêntico na frase, estabelecendo o mesmo tipo de relação com a palavra que surge antes dos dois-pontos.

No exemplo que apresenta, os dois-pontos facilitariam a leitura, ao prepararem o leitor para a ocorrência de diversos itens de valor idêntico.

A forma de apresentar o texto pode ser a que ocorre no exemplo que dá, ou por itens, como exemplifico:

«Os instrumentos utilizados foram: 

  • a política de preços de energia;
  • a política tecnológica;
  • a política de incentivos e subsídios.

(…)»