Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Deparei-me recentemente com uma dúvida relativa ao nome que se deve dar à República da China (não confundir com República Popular da China), se Taiwan, se Formosa.

Li em vários artigos do Ciberdúvidas onde se defende a opção Formosa por ser a palavra em português, nome atribuído pelos Portugueses quando chegaram à ilha em 1516.

Mas permitam-me que coloque as seguintes questões:

Por que motivo se há-de chamar Formosa, quando o país se chama Taiwan? Acaso o Sri Lanka também se chama Ceilão? Ou o Myanmar se chama Birmânia?

Porquê manter um nome que não é manifestamente o usado pelo povo desse país, independentemente de este ser ou não reconhecido pela República Popular da China?

Não vejo aqui razão para saudosismos quinhentistas, pois sou da opinião que acima das palavras que adoptamos para a nossa língua, deve estar o respeito (quer se concorde ou não) com a origem e proveniência das mesmas.

Continuação do bom trabalho.

Resposta:

Fica aqui expressa a opinião do consulente, que respeito. No entanto, farei três considerações:

1.ª Se aceitamos a forma Taiwan, com o argumento de que este é o nome do país em apreço na língua que aí tem estatuto oficial ou maioritário, então teremos também de aceitar Zhōngguó como nome da República Popular da China, porque é assim que este país se chama em mandarim. Ou para apenas fazer referência ao espaço da União Europeia, teríamos de aceitar igualmente Deutschland, para não dizer Alemanha, Magyarország, em lugar de Hungria, Suomi em vez de Finlândia, ou Elláda, a substituir Grécia. Não estou a dizer que não se possa usar Taiwan; só quero mostrar que é frequente que um país seja conhecido por nomes diferentes em línguas diferentes.

2.ª O nome Formosa surgiu realmente na época de ouro do Império Português, na primeira metade do século XVI (ver Textos Relacionados). Usar a palavra Formosa pode ser quinhentismo ou colonialismo serôdios, mas, nessa perspectiva, receio que empregar Alemanha (palavra atestada desde o século XIII) possa ser medievalismo ultrapassado, e que a palavra Grécia reflicta a arrogância dos conquistadores romanos, que preferiram ignorar a forma helénica. E será que pronunciar Egipto é sinal de eurocentrismo, uma vez que,...

Pergunta:

Peço e agradeço o significado de "surrebeque". Deriva de surrar («curtir pele»)?

Sou da região de Castelo Branco e ouço, quando se fala em tecidos (roupa), que os homens usavam calças de "surrebeque".

Não sei se a palavra se escreve com u ou o. Todavia, antes de vos contactar, também não a encontrei no dicionário Porto Editora.

Resposta:

A forma "surrebeque" é uma variante do regionalismo surrobeco ou surrobeque, que significa «amarelado como a pelagem dos carneiros» e «tecido grosseiro, amarelado e resistente, semelhante ao burel, porém um pouco mais largo» (Dicionário Houaiss). José Pedro Machado, no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa, consigna as entradas sarrabeco, serrobeco e surrobeca, além de referir a forma surrobeco no artigo dedicado a serrobeco. Trata-se, portanto, de um termo popular português cujas pronúncia e grafia ainda não estabilizaram.

Quanto à origem do termo, o Dicionário Houaiss apoia-se no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, para dizer que está «relacionado ao esp[anhol] rebeco (1435, sob a f[orma] robezo, 1475 rebezo, 1765 rebeco), "espécie de cabra", de orig[em] pré-romana».

Pergunta:

O estrangeirismo post é muito usado entre nós para designar o objecto da publicação num blogue. Para o evitar, já se sugeriu aqui, no Ciberdúvidas, a utilização dos termos entrada ou artigo. Mas não será muitíssimo mais provável que venha a vingar o termo "poste", aportuguesamento do estrangeirismo post, hoje utilizado por quase toda a gente? Tal como blogue foi o aportuguesamento de blog?

O blogue, originariamente, era uma espécie de "diário da Internet". O termo entrada, aplicado a um diário, adequa-se bem. Mas actualmente um blogue é muito mais do que um diário e em muitos casos nada tem que ver com um diário.

Por outro lado, o termo artigo ajusta-se melhor a um jornal/revista ou a um blogue com características próximas das de um jornal/revista, adequando-se mal a outros casos.

Será mesmo incorrecto o uso do termo "poste"?

Ainda relativamente aos blogues, é correcta a utilização dos termos "postar" e "postado", a par dos termos "publicar" e "publicado"?

Obrigada.

Resposta:

Na resposta em causa, segue-se um critério desejável: perante um estrangeirismo, deve procurar-se um termo equivalente ou criar uma palavra que se enquadre nas formas vocabulares típicas portuguesas, isto é, com características fónicas e morfológicas características do português. Não é que o aportuguesamento de post, poste, esteja totalmente incorrecto, visto a sua configuração ser possível em português, pelo menos do ponto de vista fonético. Acontece, porém, que se confunde com poste, «coluna, pilar», engrossando o conjunto das palavras homónimas do português. Não sendo isto em si um mal, porque os falantes sabem distingui-las pelo contexto, as palavras homónimas são, mesmo assim, susceptíveis de diminuir a clareza na comunicação.

Quanto ao verbo postar e ao seu particípio postado, o mesmo se verifica: já existem dois verbos homónimos, postar, «colocar» e «estar de pé», e postar, regionalismo brasileiro que significa «pôr no correio». A introdução de postar, «publicar no blogue», vem certamente aumentar a ambiguidade do vocabulário português.

Enfim, não posso dizer que poste e postar sejam aportuguesamentos ilegítimos. Devo, no entanto, advertir que, neste momento, poste e postar são ainda opções discutíveis no que se refere à criação de termos relacionados com a actividade dos blogues. Seja como for, a própria consulente diz, com pertinência, que blog já foi adaptado como blogue ao português. Sendo assim, dada a especificidade deste tipo de escrita, porque não aceitar também outros aportuguesamentos fónicos como poste, que parecem mais capazes de dar conta dessa realidade?

Pergunta:

Gostava de saber se as palavras formadas pela junção de duas outras palavras, como exemplo: Gaianima (Gaia + Anima), são consideradas palavras formadas por amálgama ou se existe alguma outra forma de as classificar. Que nome damos à transformação de duas letras iguais numa só para juntarmos as palavras?

Obrigada.

Resposta:

É mesmo o termo adequado, atendendo à sua definição por Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, em Inovação Lexical em Português (Lisboa, Edições Colibri/Associação de Professores de Português, 2005, pág. 83):

«amálgama: palavra resultante da junção de pares de outras palavras, normalmente construída de forma consciente, resultando de criatividade. Ex.: credifone

Aparentemente, dado que se trata da designação de uma empresa instituída pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, é natural que se recorra a uma denominação criativa, mediante a junção de um topónimo, Gaia, e um latinismo anima, «alma».

Mas neste caso, também se pode usar o termo tradicional aglutinação, visto estarmos perante a fusão de duas palavras: Gaianima.

O encontro de duas letras iguais é, na verdade, a fusão de dois sons e chama-se crase, conforme se confirma no Dicionário Houaiss:

«fusão de duas vogais idênticas numa só, que ocorre, p. ex.:, na evolução das línguas român[icas] (p. ex.: lat[im] colore "cor" > português coor > cor).»

 

 

Pergunta:

Bem sei que a questão «senão/se não» já foi muitas vezes aqui respondida. No entanto, procurando em todas as vossas respostas, continuo sem ter a certeza de qual a forma adequada nesta frase: «Não sei se o leitor já reparou, mas a História é um bocado machista. Senão, veja: neste mês celebram-se os vinte anos da queda do Muro de Berlim.»

Deveria ser «se não», estando o verbo reparar subentendido? «Se não reparou, veja». Ou pode ser senão, significando «de contrário»?

Peço desculpa por vos maçar com uma questão já tantas vezes colocada. Aproveito para dar os parabéns pelo vosso trabalho e também para vos agradecer as tantas dúvidas que me tiram.

Obrigado.

Resposta:

Este caso é ambíguo: é possível ocorrer tanto o advérbio senão como a sequência da conjunção se com advérbio de negação numa construção elíptica em lugar de uma oração:

1 – «Não sei se o leitor já reparou, mas a História é um bocado machista. Senão [= «de contrário, de outro modo»], veja: neste mês celebram-se os vinte anos da queda do Muro de Berlim.»

2 – «Não sei se o leitor já reparou, mas a História é um bocado machista. Se não [= «se não reparou/se não é machista/ se não é assim1 »), veja: neste mês celebram-se os vinte anos da queda do Muro de Berlim.»

1 «...se não é assim»: agradeço esta paráfrase ao consulente Fernando Bueno.