Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a melhor tradução possível para bootstrap (quando utilizado para descrever um resultado conseguido apenas à custa do próprio esforço)?

Resposta:

Em primeiro lugar, gostaria de declarar que, sem contexto, não há «melhor tradução possível», e, com contexto, podemos chegar a boas traduções sobre as quais é por vezes difícil afirmar que uma é melhor do que as outras. Dito isto, verifico que a expressão bootstrap se encontra dicionarizada como parte integrante da expressão «pull/drag yourself up by your (own) bootstraps», correspondente a «fazer-se por si próprio, subir por seus próprios esforços» (Dicionário Webster´s Inglês-Português, organizado por Antônio Houaiss e Ismael Cardim, Lisboa, Círculo de Leitores, 1988). Mas o Dicionário Inglês-Português da Porto Editora propõe uma expressão em português que me parece mais expressiva: «subir a pulso». Posso, portanto, sugerir que certas ocorrências de bootstrap, aparentemente fora do contexto idiomático mas alusivas ao mesmo, suportem uma tradução como «subida a pulso». Outra solução é a registada no muito útil sítio Linguee, que recentemente passou a dispor de traduções em português: «iniciativa própria».

Noutros casos, boostrap, enquanto substantivo e sem fazer alusão à mencionada expressão idiomática, equivale a «puxadeira de bota» e, em linguagem informática, «programa de arranque» (Dicionário Inglês-Português, Porto Editora).

Pergunta:

Qual o significado denotativo e conotativo dos provérbios «Em terra de cegos, quem tem um olho é rei» e «Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento»?

Resposta:

Já aqui temos dito que, em certos contextos escolares, é corrente a distinção entre significado denotativo (o chamado «significado real» das palavras) e sentido conotativo (também conhecido como «sentido figurado»). Embora esta terminologia pareça estar hoje ultrapassada, vou atender ao pedido feito na pergunta:

1. «Em terra de cegos, quem tem um olho é rei.»

Significado denotativo (o que resulta da interpretação da frase que constitui o provérbio): «em qualquer terra onde todos são cegos, o indivíduo que consiga ver de um olho é o rei».

Significado conotativo (é o que decorre da interpretação metafórica da frase): «entre um grupo de gente  distraída ou negligente, aquele que consegue identificar uma boa oportunidade está sempre em vantagem».

2. «Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento.»

No Dicionário de Provérbios, de Roberto Cortes de Lacerda et al. (Lisboa, Contexto, 2000), registam-se duas versões do provérbio:

«Por fora, bela viola; por dentro, molambos só.»

«Por fora, cordas de viola; por dentro, pão bolorento.»

A versão apresentada pela consulente resulta da intersecção das duas versões.

Significado denotativo: «existe uma viola que tem bom aspecto por fora mas que dentro tem só pão bolorento (ou molambos, isto é, trapos)».

Significado conotativo: «uma bela aparência pode ser enganosa».

Pergunta:

Há alguma definição para o acto de separar a gordura da carne de um animal? Procuro um termo próprio para este acto.

Obrigado.

Resposta:

Em dicionários gerais de português europeu (Dicionário de Língua Portuguesa, da Porto Editora; Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado), não encontramos nenhum termo específico, a não ser desengorduramento (de desengordurar) e desgraxamento (de desgraxar, no sentido de «desengordurar»). Encontramos também o verbo desensebar, que permite a construção de desensebamento. A edição brasileira do Dicionário Houaiss (2001) acolhe os mesmos termos.

Pergunta:

Como se pronuncia Scalabis? Acentuando a antepenúltima, ou a penúltima sílaba?

Os meus agradecimentos.

Resposta:

Acentuando a antepenúltima sílaba: "scálabis" (ver escalabitano no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa).

Pergunta:

Há uma expressão que se lê e ouve constantemente: «gastar à tripa forra». Embora se compreenda facilmente o seu significado, será possível informarem-me como surgiu?

Obrigada.

Resposta:

Não encontro comentários sobre a origem da expressão. No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001), tripa-forra (com hífen)1 tem entrada própria, sendo a palavra classificada como elemento nominal da locução adverbial «à tripa-forra», cujas definições são: «em grande quantidade ou abundância, fartamente; até não poder mais» e «gratuitamente, às custas de outrem; de borla».

Note-se que tripa é, em linguagem familiar, o mesmo que barriga (cf. idem), como na expressão «encher a tripa», «comer muito até ficar farto»; e forra, o feminino de forro, «livre, desobrigado». Tripa-forra é, pois, a fixação do sintagma «tripa forra», isto é, «barriga livre». Lembrando que barriga é por metonímia o mesmo que apetite, como ocorre na expressão «ter mais olhos que barriga», é de sugerir que tripa-forra tenha surgido como alusão a um apetite sôfrego, desenfreado ou descontrolado, sem limites por falta de comida ou de dinheiro para a comprar. Sendo assim, «gastar à tripa-forra» quer dizer «gastar descontroladamente». O que acabo de propor é meramente uma conjectura baseada na análise semântica e morfológica da expressão, visto que, como disse, não tenho elementos históricos que me permitam descrever o contexto factual da sua génese.

1 O Dicionário Houaiss (edição brasileira de 2001, s. v. tripa) regista «à tripa forra» sem hífen, definindo-a como locução sinónima de «à larga». Dado que tripa-forra ou tripa forra ainda mantêm um cer...