Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é a forma correcta: «o financiamento da inovação empresarial», ou «o financiamento à inovação empresarial»?

Muito obrigado.

Resposta:

Emprega-se «financiamento de», embora não seja impossível «financiamento a», quando se quer vincar a noção de ajuda ou apoio financeiros.

Muitos substantivos derivados de verbos transitivos costumam seleccionar um complemento preposicionado (oblíquo), introduzido pela preposição de. Se se diz «financiar a inovação empresarial», a tendência é, portanto, dizer e escrever «financiamento da inovação empresarial».

No entanto, temos o caso de apoio, que é substantivo correspondente a apoiar, verbo transitivo, e, apesar disso, selecciona quer a preposição de quer a preposição a (cf. Francisco Fernandes, Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, São Paulo, Editora Globo, 1995): «apoio da/à inovação empresarial». Também se pode referir a regência de ajuda, que selecciona as preposições a, de, em (idem). Deve vir daqui, por analogia, a associação de a com financiamento, uma vez que por este substantivo se entende frequentemente «apoio financeiro» ou «ajuda financeira». Mesmo assim, abstraindo o valor de beneficiação marcado por apoio ou ajuda e focando a simples ideia de «pagamento de dinheiro», parece-me preferível o uso de «financiamento de».

Pergunta:

Gostaria de vossa apreciação no que se refere à utilização de variantes gráficas (tais como abdome/abdômen; aluguel/aluguer; arrebentar/rebentar; assoalho/soalho; bêbado/bêbedo; biscoito/biscouto; cãibra/câimbra; catorze/quatorze; cociente/quociente; degelar/desgelar; xícara/"chícara"; enfarte/enfarto; flauta/frauta; registo/registro; etc.). São lícitas? Pode-se utilizá-las num texto formal? Existe regra na gramática normativa que as reja? E a legislação cobre-as legalmente? Poderia, hipoteticamente, utilizá-las num texto de redação de vestibular sem haver problemas? O corretor considerá-las-á corretas? Um grande abraço e meus agradecimentos antecipados.

Resposta:

As variantes apresentadas não são apenas gráficas, porque algumas também envolvem contraste fonológico. Além disso, pares ou grupos de variantes têm de ser apreciados separadamente, não podendo definir-se critério ou norma aplicáveis a todas as alternâncias. De notar ainda que não há legislação sobre estes casos; mas o que existe em muitos dicionários são indicações sobre o uso das variantes, facilitando a tarefa a quem não as conhece. Assim, em relação aos exemplos incluídos na pergunta:1

abdome/abdómen, bêbado/bêbedo, cãibra/câimbra, cociente/quocientedegelar/desgelar são pares de variantes cujos membros têm igual aceitação;

— há pares constituídos por uma variante preferencialmente usada em português europeu e por outra mais usada no português do Brasil (não tenho dados sobre as outras variedades do português), como acontece com aluguer (Portugal)/aluguel (Brasil),2 catorze (Portugal, Brasil)/quatorze (sobretudo usado no Rio de Janeiro, Brasil)3 ; registo (Portugal)/registro (Brasil); enfarte (Portugal)/infarto (Brasil, onde também são possíveis infarto, enfarto e enfarte);

— outros pares são formados por forma mais corrente no uso, usada em contextos formais e informais, e outra forma de tom mais popular, possível só em contextos informais: rebentar (corrente)/arrebentar (popular); soalho (corrente)/assoalho (popular).

— exis...

Pergunta:

Qual o significado de Cidres em nome de rua? Haverá, em Portugal, outra ruas com este nome? Na cidade de Matosinhos, freguesia de Santa Cruz do Bispo, existe a rua referida. Sei que esse nome derivou do respectivo lugar «Lugar de Cidres»

Também agradecia, desde quando é o costume de se dar o nome de rua, dos lugares respectivos. Exemplos: «Lugar da Aldeia de Baixo» > «rua da Aldeia de Baixo»; «lugar do Mirão» > «rua do Mirão»; «lugar de Cidres» > «rua de Cidres» etc., etc. 

Resposta:

Nada sei dizer de concreto sobre a origem do topónimo Cidres. No Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista-se Oucidres, topónimo da região de Chaves (Trás-os-Montes, Portugal), sobre o qual também nada se sabe ao certo; diz Machado (op. cit.):

«Não é aceitável a hipótese recolhida por A. Costa, s. v.: «... corrupção do antigo português Oussida», o m. q. oussia [capela-mor, santuário, do latim *apsida].»

Em relação a Oucidres, A. de Almeida Fernandes (Toponímia Portuguesa Exame a um dicionário, 1999) considera que «[...] talvez se tenha aqui a raiz [pré-romana] ouc- de Ouca [...] [Ronfe, Guimarães e Sosa, Vagos]. Parece, porém, n[ome] pessoal em -is, talvez indígena romanizado (flaviense). C[om]p[arar] Ozecarus (*Ozecaris), para Zêzere, com o -i- tónico por metafonia de -is.»

Que relação se pode estabelecer entre Cidres e Oucidres? Há um caso parecido, o da etimologia de Zêzere, que remonta a Ozêzere. Também Cidres poderia ser resultado de uma forma muito semelhante a Oucidres por aférese da primeira sílaba: Oucidres > Cidres.

Mas outra hipótese é possível: Cidres como variante de Cidras, topónimo da região de Montalegre, originário de cidra (idem), no sentido de «cidreira», «fruto da cidreira» ou até «limão» ou «limoeiro», ...

Pergunta:

Será possível descrever-me o dialecto estremenho? E dar-me exemplos deste?

Resposta:

Parece haver alguma dificuldade em definir os traços característicos do dialecto estremenho português, até porque não existe a consciência de um falar homogéneo, culturalmente distintivo da Estremadura portuguesa. De acordo com a classificação de Lindley Cintra (pág. 14)1, os dialectos estremenhos fazem parte dos dialectos centro-meridionais, mais especificamente, do subgrupo centro-litoral, que abrange a Estremadura e parte da Beira Litoral, o que significa que apresentam características como:

a) a monotongação generalizada do ditongo [ow] (touro, dou passam a "tôro", "dô");

b) em certas sub-regiões, como a saloia (arredores de Lisboa), a monotongação do ditongo [ej] ("manêra" em vez de maneira), embora este tenha evoluído para [ɐj] no dialecto lisboeta ("manâira");

c) sibilantes pré-dorsodentais, isto é, o /s/ e o /z/ são pronunciados como no padrão europeu e distinguem-se bem do x de baixo e o j de haja — um pouco ao invés do que se verifica nos dialectos setentrionais, onde essas consoantes, na perspectiva dos falantes do padrão europeu ou dos dialectos centro-meridionais, parecem soar quase como "x" e "j", porque são apicoalveolares.

Note-se que o próprio padrão do português europeu constitui uma variedade centro-meridional, baseada nos hábitos linguísticos das classes cultivadas de Lisboa e Coimbra.

1 Ver L. F. Lindley Cintra, "Nova Proposta de Classificação dos Dialectos Galego-Portugueses", Boletim de Filologia, Lisboa, Centro de Estudos Filológicos, 22, 1971, p...

Pergunta:

Os romances derivaram do latim, especialmente, do latim vulgar. Porém, a rigor, eram línguas distintas. Gostaria que comentassem sobre «em que os romances ibéricos são diferentes do latim»?

Resposta:

Já aqui nos temos referido ao percurso histórico que levou do latim, na sua modalidade popular (o chamado latim vulgar) aos romances regionais, e destes às actuais línguas românicas, incluindo as ibéricas. Eis algumas das áreas em que os romances ibéricos, continuando tendências do latim vulgar, se distinguem do latim clássico:

— perda generalizada da flexão casual, mantida apenas nos pronomes pessoais (eu, me, mim, -migo, em português; yo, me, , -migo, em castelhano);

— reestruturação da conjugação verbal, com o aparecimento de formas analíticas em lugar das sintéticas no futuro: AMABO (futuro), «amarei», substituído por AMARE HABEO > amarei (port.), amaré (cast.);

— vozeamento das consoantes oclusivas surdas em posição intervocálica: CAPĔRE > caber (port.), caber (cast.); DATUM > dado (port.), dado (cast.); AQUAM > água (port.), agua (cast.).

Cf. A história de duas línguas: o grego e o latim