Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Pela segunda vez venho colocar a questão se violar pertence à família de palavras de violento.

Resposta:

As palavras partilham o mesmo radical, viol-, logo pertencem à mesma família de palavras. Para confirmar essa relação, cito o Dicionário Houaiss, que regista o radical viol- como antepositivo:

«[A]ntepositivo, do v[erbo] lat[ino] violo, as, āvi, ātum, āre, "tratar com violência, violar" — conexo com vis, "força" [...]; presente em port[uguês] em cultismos do sXV em diante, como violabilidade, violação, violador, violar, violatório, violável, violência, violentado, violentador, violentar, violento

Pergunta:

Tiro minhas dúvidas nesta página. Estou em São Paulo, Brasil. Nasci no interior do estado de São Paulo, portanto, muitas palavras usadas pelo povo de minha região trazem ainda usos arcaicos, que estão paradas no tempo. Acho essa particularidade fundamental para uma língua.

Parabéns pelos trabalhos.

Resposta:

Penso que o consulente se quer referir à importância dos arcaísmos no português do Brasil. Obras descritivas têm atribuído aos dialectos brasileiros certos traços conservadores que abrangem o léxico. Pilar Vázquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, na sua Gramática da Língua Portuguesa (tradução portuguesa, Lisboa, Edições 70, 1980, pág. 123), comentam esse aspecto:

«Como todas as línguas transportadas, o português do Brasil oferece larga percentagem de traços arcaicos. Dentro do campo do vocabulário, o número de palavras esquecidas na antiga metrópole e que se mantêm vivas no Brasil é extraordinário. Citemos apenas algumas: faceiro no sentido de "petimetre" [= "peralta"]; físico com o sentido de "médico"; assistir por "residir", "habitar"; reinar na acepção de "fazer travessuras"; função por "baile"; aéreo no sentido de "perplexo", etc.»

Mais adiante, afirmam as mesmas autoras, quando discorrem sobre a história do português do Brasil (idem, págs. 220-221):

«E são numerosos os vocábulos arcaicos — alguns pertencentes inclusivamente ao léxico fundamental do idioma — que persistem na fala das classes humildes da sociedade brasileira como na da portuguesa; despois por depois, entonce por então, polo, pola por pelo, pela, prumode (< loc. arc. "por amor de") "a fim de", fruita, luita por fruta, luta, esprito por

Pergunta:

O vocábulo banco pode ter várias acepções em português. As mais comuns são as que designam uma peça de mobiliário e uma instituição financeira. Mas também temos «banco de urgências», «banco de sangue», «banco de dados». Talvez as duas últimas estejam próximas de banco como instituição financeira, na medida em que se trata, nos três casos, de locais onde se guardam depósitos. Mas como explicar que banco de sentar e banco de depositar tenham a mesma grafia? São palavras homónimas, ou trata-se de uma única palavra polissémica? Penso que uma resposta adequada dependeria de uma análise histórico-etimológica. Por outro lado, não fiquei convencido com uma explicação segundo a qual os antigos cambistas se sentavam em bancos na rua, pelo que a palavra se teria mantido quando passaram a operar dentro de portas. É um simplismo que deixa por explicar, por exemplo, a razão pela qual a palavra banco, na acepção de «instituição financeira», é comum a várias línguas.

Poderão fazer alguma luz sobre o assunto, em especial quanto à origem etimológica do(s) vocábulo(s) e à qualificação do caso como polissemia ou homonímia?

Antecipadamente grato!

Resposta:

O banco de sentar e o banco da actividade financeira parecem ter étimos muito próximos, de tal maneira, que acabam por se confundir num étimo mais recuado ainda. O banco-«assento», tem origem no frâncico, língua germânica donde evoluiu o neerlandês e que influenciou profundamente o romance do Norte da antiga Gália, donde proviria, mais tarde, entre vários dialectos, o que deu origem ao francês. Sobre o radical banc-, o Dicionário Houaiss indica que se trata de:

«antepositivo, do frânc[ico] *bank, "banco fixado à parede ao longo de uma sala ou de um quarto", pelo latim vulgar; observe-se que, com a ac[e]p[ção] de "assento", banco é das orig[ens] do vern[áculo], enquanto, com as de "acidente geográfico" e "estabelecimento bancário", se documenta já no sXV.»

A nota etimológica relativa à entrada banco é mais pormenorizada sobre a história das várias acepções de banco:

«frânc[ico] *bank, "banco fixado à parede ao longo de uma sala ou de um quarto"; ac[e]p[ção] "estabelecimento bancário" e "acidente geográfico" provêm do it[aliano] banca (1340), que, segundo Corominas, foi inicialmente empregado com o sentido de "tenda para vender mercadorias" [...] f[ormas] hist[óricas] sXI bancos "assento", 1446 bamco "estabelecimento bancário", sXV banco "acidente geográfico"»

O Dicionário Houaiss pressupõe, portanto, que a relação entre banco-«assento» e banco-«entidade bancária» é uma questão de polissemia. No entanto, é provável que a forma ba...

Pergunta:

Em primeiro lugar gostaria de agradecer pelo trabalho que têm vindo a desenvolver nesta página, é de louvar a precisão, a coerência, o conhecimento e empenho que os implicados dedicam às respostas de todos os falantes com dúvidas, como eu.

Há algum tempo que me debato com a dúvida no momento de traduzir a expressão espanhola «hacer/coger el relé», supostamente esta expressão vem do francês relais e utiliza-se muito no mundo da interpretação de cabine. Quer dizer que um intérprete traduz da língua em que é dada a conferência (imaginemos que é o inglês) para o espanhol (por exemplo) e os intérpretes das outras línguas apoiam-se na tradução desta cabine e «cogen el relé» para traduzir às suas respectivas línguas de chegada (no meu caso o português). Já consultei imensos dicionários e não consigo chegar a nenhuma conclusão. Seria possível sugerirem-me alguma expressão/palavra portuguesa que traduza esta situação?

Muito obrigada pela ajuda.

Resposta:

Diz-se «trabalhar em relé» (em contraposição a trabalhar directamente/em directo») mas não "fazer o relé"1. Coloquialmente, entre intérpretes, também se emprega «apanhar o relé», aparentemente equivalente literal de «coger el relé»2. Confirmo a origem de relé, segundo o Dicionário Houiass, do «fr[ancês] relais (sXIII), "cães deixados de reserva para substituir os que atuam em uma caçada"; "cavalos deixados no percurso de viajantes e caçadores para substituir os que vêm cansados"; "o lugar onde estas mudas ocorrem"; "equipe de substituição em uma corrida"; (1877) "aparelho em um circuito elétrico", de relayer, "render, revezar, substituir" com infl[uência] do fr[ancês] ant[igo] relais, "demora"».

Assinale-se que relé tem um homónimo, relé, que é variante de ralé, «plebe», sem relação etimológica conhecida com o francês relais.

1 Os meus agradecimentos ao dr. Garry Mullender (Faculdade de Letras de Lisboa), a quem devo quase toda a informação contida nesta resposta.

2 Note-se que a pessoa que fornece a tradução directa da língua de origem designa-se pivô, do francês pivot.

Pergunta:

Agradecia explicação do uso da preposição de contraída com o artigo na primeira designação e o emprego da mesma preposição, na sua forma simples, sem o artigo na segunda.

Grato pela vossa atenção.

Resposta:

O artigo definido, associado a um substantivo, delimita-lhe a a referência, torna-o mais concreto. Sendo assim, tendo em conta os contextos em apreço, vemos que, quando se emprega o artigo definido («a Saúde»), a expressão refere um sector de actividade, neste caso, as entidades que ministram cuidados de saúde. Sem artigo, «Saúde» remete genericamente para a condição física, como ocorre na expressão «ter saúde»; deste modo, quando se fala de «Delegação de Saúde», pretende-se salientar  a função de tal delegação, a qual diz directamente respeito ao acompanhamento do estado de saúde das populações, e não «à Saúde» institucional.