Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual das duas formas é a correta: "circuambulação", ou "circum-ambulação"?

Uma vez definida a forma correta, poderíeis definir o sentido da palavra?

Aquelas sete voltas que os maometas dão em torno da Caba, santuário máximo do Islã, na Meca, podem ser chamadas pelo vocábulo em apreço? Se sim, no singular, ou plural?

Muito obrigado.

Resposta:

A palavra circum-ambulação não se encontra em dicionários gerais, mas é usada como tradução de circumambulation, termo inglês usado em textos relacionados com as ideias do psicanalista Carl Gustav Jung (1875-1961). É palavra bem formada, na qual o prefixo circum- é usado com hífen antes de palavra começada por vogal, de harmonia com o disposto na Base XVI, 1.º c): «Nas formações com os prefixos circum- e pan-, quando o segundo elemento começa por vogal, m ou n (além de h [...]): circum-escolar, circum-murado, circum-navegação; pan-africano, pan-mágico, pan-negritude

Convém observar que, já existindo a palavra circunvolução, com o mesmo significado e aceitável em reeferência a temáticas religiosas ou místicas,1 poderá parecer dispensável a criação da palavra em questão. Mas, como se trata de um termo especializado, considero que fica justificado o seu uso.

1 A palavra é usada no plural — circunvoluções —, como  designação das voltas dadas pelos fiéis muçulmanos à Caba.

Pergunta:

Será correcto escrever a palavra estado quando nos referimos a um Estado em abstracto, ou seja, sem que se queira identificar um Estado concreto? Exemplo: deve-se escrever o «Estado português», mas se quisermos dizer «qualquer estado deve obedecer às normas internacionais» pode-se escrever em minúscula a palavra estado?

Obrigado pela atenção dispensada.

Resposta:

A resposta não pode ser dada sem hesitação, porque não existe norma clara sobre o uso de maiúscula inicial na palavra estado.1 O Dicionário Houaiss considera que, em referência a «país soberano, com estrutura própria e politicamente organizado», se deve usar maiúscula (Dicionário Houaiss); exemplo: «o Estado brasileiro». No entanto, numa resposta anterior, de João Carreira Bom, lê-se:

«[...] quando um substantivo está ligado a um nome próprio e indica apenas a espécie a que esse nome próprio pertence, tal substantivo escreve-se com letra minúscula. Exemplos: «O estado de S. Paulo.» «O Canadá é uma nação da América do Norte.» Mas, quando o substantivo forma com outro uma expressão própria, ambos se escrevem com inicial maiúscula. Exemplos [...]: Câmara Municipal de Serpa, Estado de S. Paulo [...].»

Não formando «qualquer estado» uma expressão própria, dir-se-ia que nesse contexto a palavra deveria ser sem maiúscula inicial. Contudo, e porque muitas vezes é a maiúscula inicial que permite distinguir Estado, «país soberano», de estado, «condição, situação», considero conveniente escrever «qualquer Estado», de modo a assinalar que não se trata de simples condição ou situação referida a um indivíduo ou a um grupo restrito.

1 Nem mesmo o Acordo Ortográfico de 1990, na sua Base XIX, "Das minúsculas e maiúsculas", define o procedimento a adoptar em casos como este.

Pergunta:

O que significa "pé-alto"?

Segue-se o contexto em que surgiu: «Sem sinais de kitsch fadista, um pé-alto de sete metros, tectos em abóbada, colunas de pedra, tem uma década de história (...).»

Resposta:

O contexto ainda não está completo, para que se entenda qual é o tópico aí abordado. Felizmente, encontra-se acessível em linha, permitindo-me a citação do seguinte extracto:

«Ali quase ao virar de esquina, outro espaço de referência espera por nós. É a real Casa de Linhares, célebre também por outro apodo, o da casa anterior, Bacalhau de Molho. É um luxo sóbrio, palaciano, nas fundações de um edifício renascentista que ruiu no terramoto de 1755, tão inerente à história lusitana que Luís de Camões, parente dos condes de Linhares, aqui viveu. Sem sinais de kitsch fadista, um pé-alto de sete metros, tectos em abóbada, colunas de pedra, tem uma década de história e é gerido por Pedro Guerra e Manuel Bastos [...].»

Ora bem, a palavra em questão, "pé-alto", deve referir-se, ao que parece, à altura das paredes da divisão de uma casa, mas acontece que os dicionários não a consignam, registando, em vez disso, pé-direito. Por exemplo, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa define pé-direito como «altura do pavimento ao tecto» e «suporte sobre o qual assenta um arco, uma abóbada ou uma armação de madeira». Sobre a origem deste termo, existe uma resposta no arquivo do Ciberdúvidas, e encontra-se uma tentativa de etimologia nas páginas da revista Mundo Estranho.

Sei, no entanto, que, pelo menos, em Portugal, há quem use coloquialmente a expressão «pé de altura», para referir a mesma noção. Não admira, portanto, que, substituindo altura pelo adjectivo cor...

Pergunta:

Gostaria de colocar a seguinte questão: segundo Lindley Cintra, verbos como agir e embarcar são verbos regulares, e, segundo o DT (Dicionário Terminológico), são irregulares.

Agradecia o esclarecimento.

Resposta:

Fónica e morfologicamente, os verbos agir e embarcar são regulares. À luz do DT, os mesmos verbos são irregulares apenas do ponto de vista gráfico («Algumas irregularidades são meramente gráficas», B. 2.2.2. Flexão verbal, Verbo Irregular): ajo vs. ages, age, etc.; embarco (presente do indicativo) vs. embarque (presente do conjuntivo). Estas irregularidades permitem manter a pronúncia do radical do verbo ao longo da sua conjugação, evitando que se escreva *"ago" em lugar de ajo, ou *"embarce" em vez de embarque.

Quanto a Lindley Cintra, penso que a consulente quer referir-se à Gramática do Português Contemporâneo, cuja autoria é realmente desse gramático, partilhada com Celso Cunha. Nesta obra, assinala-se que casos de discordância gráfica, como os aqui apontados para agir e embarcar, não devem ser confundidos com irregularidade verbal:

«É necessário não confundir irregularidade verbal com certas discordâncias gráficas que aparecem em formas do mesmo verbo e que visam apenas a indicar-lhes a uniformidade de pronúncia dentro das convenções do nosso sistema de escrita. Assim:

a) os verbos da 1.ª conjugação cujos radicais terminem em -c, -ç, e -g mudam estas letras, respectivamente em -qu-, -c e -

Pergunta:

Gostaria de ter uma dúvida esclarecida referente à locução conjuncional «ao passo que». Antes de perguntar, estava pesquisando e vi que já há uma pergunta e respectiva resposta, é a 25 867, «Ao passo que»: locução conjuncional coordenativa adversativa.

Pesquisando na gramática do Celso Cunha, ele classifica essa locução como proporcional, e não como adversativa. Nesse caso, então, os dois casos estariam certos, sendo, portanto, uma polissemia conjuncional?

Obrigada.

Resposta:

A locução «ao passo que» está classificada como locução conjuntiva proporcional por Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, pág. 585). No entanto, verifica-se que esta locução é sinónima de enquanto em contextos como «o João é rápido, ao passo que/enquanto o Joaquim é lento», frase em que a conjunção é sinónima de mas, conjunção coordenativa adversativa. Importa ainda assinalar que o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea regista a locução «enquanto que1» como equivalente de mas. Confirma-se, deste modo, a polissemia da locução em apreço.

1 Associado à conjunção enquanto, o uso de que tem sido condenado pelos gramáticos mais puristas. Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, pág. 329) aponta tal reserva, mas não parece condená-la, porque diz haver «exemplos de escritores corrretos».