Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostava de saber se está correcta a seguinte expressão (entregando, por exemplo, uma nota de 20 euros a um empregado de mesa, dizer...): «Pague-se de 10 euros.»

Resposta:

É correta a construção «paga-se de». Usa-se no sentido de «receber determinada quantia correspondente ao preço de uma mercadoria, de um bem, de um serviço», conforme se lê no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, em subentrada do verbete dedicado ao verbo pagar. Da mesma fonte, transcrevo o seguinte exemplo: «Pagou-se do café e devolveu-me o troco.»

Pergunta:

Nos documentos profissionais é habitual ler «ou a informar...»; «referente ao assunto em referência...» e «descrito infra». Está correto?

Resposta:

1. «ser a» + infinitivo

Esta construção já foi comentada favoravelmente no Ciberdúvidas, mas na verdade não a encontro descrita nem em dicionários gerais nem em prontuários. No português europeu, confirmo que ocorre em cartas formais, aparentemente como que a enfatizar a formalidade do ato de comunicação, antes de um verbo principal no infinitivo, sem que se note diferença significativa em relação ao uso finito desse mesmo verbo principal: «somos a informar» = «informamos». Deste modo, não direi que é incorreta a construção em apreço, muito embora me pareça um tanto rebuscada.

2. «referente ao assunto em referência»

É uma expressão claramente pleonástica («referente... referência»), pelo que sugiro «respeitante ao assunto em referência».

3. «descrito infra»

Pode usar-se infra ou supra1, sempre que, em dado passo de um documento, se pretenda remeter o recetor para uma passagem do mesmo, conforme se descreve no Dicionário Houaiss:

infra: «abaixo [Us. para indicar trecho da mesma página, mais abaixo, ou de página(s) posterior(es).] [...] Ex.: consulte a tabela i[nfra]»

supra: acima [Us. para indicar trecho da mesma página, mais acima, ou de página(s) anterior(es).] [...] Ex.: consulte a tabela s[upra]»

1 Recomenda-se o itálico, já que não são palavras portuguesas, mas latin...

Pergunta:

A corrigir um exercício da Gramática Prática de Português (2.º ciclo, 2011, segundo as normas do DT e do AO) surgiu-me uma dúvida que me levou a outros exemplos. Passo a explicar. Aparece a palavra água para exemplificar um ditongo crescente. E na palavra qual a solução diz que se trata de um ditongo oral e crescente.

Primeira pergunta: tratando-se de ditongos, o mesmo se aplica à sequência -ua- das palavras lua, quando, habitual e guarda-chuva? Ou nalguns destes exemplos haverá um hiato e porquê?

Segunda pergunta: tratando-se de hiato ou ditongo, como são divididas estas palavras para efeitos de divisão silábica e de translineação?

Terceira pergunta: é a palavra água grave, ou esdrúxula?

Quarta pergunta: na palavra temia, estamos perante um ditongo crescente e oral, ou perante um hiato?

Resposta:

A respeito de lua, trata-se de um dissílabo cujo acento tónico recai na primeira sílaba, lu-. Este é um caso de hiato.

Diferente é o caso de água, quando e guarda, porque, tradicionalmente, se considera que u, depois de q ou g e seguido de vogal, se torna semivogal, formando ditongo.

No contexto da divisão silábica, se houver hiato, separam-se a vogais, porque são núcleos de sílabas diferentes, como é o caso em lua: lu.a. Nos outros casos, verificam-se ditongos, logo, não há lugar à separação de vogais e o ditongo indica apenas uma sílaba: á.gua, quan.do, guar.da. Finalmente, a respeito de habitual, há duas possibilidades: hiato em pronunciação pausada (ha.bi.tu.al) ou ditongo em pronunciação rápida (ha.bi.tual).

Atenção, que na translineação destas palavras não se devem deixar letras sozinhas, pelo que as sílabas de lua e água não se separam. Nas outras palavras, é possível a translineação:

quan-
do

 

Pergunta:

Estou a traduzir um catálogo espanhol de prendas natalícias para português que tem o título (traduzido para português) «Aqui tens... Natal». Na Espanha fazem o duplo sentido léxico de «aqui tens... prendas (para o Natal)» e logo também se pretende dizer que «aqui chegou».

Gostaria de saber (até porque tem de ser o mais semelhante possível tudo o que se traduz) se é correcto dizer: «Aqui tens.. Natal», «Aqui está... Natal», etc.

Resposta:

Eu proporia «Aqui tem... o Natal», pelas seguintes razões:

1. A palavra Natal costuma ser usada com artigo – definido, quando se trata de referir a festa celebrada a 25 de dezembro, ou indefinido, quando se alude à maneira como se concebe essa celebração («Tenha um Natal feliz!»).

2. Contudo, a respeito da frase que o consulente propõe inicialmente, assinalo que é possível em português uma sequência «Aqui tens... Natal», na medida em que assim como se diz «é Natal», sem artigo, também é possível formar as frases «há crianças que não têm Natal» ou «neste ano não há Natal por causa da crise» ou falar de «férias/período de Natal».1

3. Dito isto, parece-me que a ausência de artigo em «Aqui tens... Natal» torna a frase interpretável apenas como «Aqui... tens condições para celebrar o Natal – incluindo os tradicionais presentes». Se o artigo for incluído – «Aqui tens... o Natal», já a frase permite a dupla leitura pretendida: «Aqui tens aquilo que define o Natal, incluindo as prendas» e «chegou o Natal».

4. Finalmente, uma observação relativa ao tratamento do interlocutor no contexto da promoção comercial: em Portugal, usam-se as formas pronominais e verbais da segunda pessoa do singular, tu, com contenção, reservando-as para a intimidade ou certos contextos profissionais. Quero dizer que em campanhas publicitárias que visem o comprador adulto se preferem as formas de terceira pessoa do singular. Diga-se, portanto, «Aqui tem... o Natal».

1 A possibilidade de expressões «férias de Natal», «período de Natal», «época de Natal» não invalida, no entanto, «férias/período/época ...

Pergunta:

Tenho ouvido frequentemente a palavra admonição usada para designar o mesmo que uma pequena introdução/apresentação de uma temática que irá ser desenvolvida posteriormente. Também já ouvi a palavra monição, para designar o mesmo. Está correto? As duas palavras existem e são sinónimas?

Resposta:

As palavras em questão estão dicionarizadas, mas não com os significados que o consulente lhes atribui. Consultando o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, lê-se:

admonição [...] P[ouco]  Us[ado] Advertência feita a alguém sobre a incorrecção da sua conduta, aconselhando-a a modificá-la. = Admoestação, repreensão [...]

monição [...] Can[ónico]. Aviso judicial que o bispo faz, em certos casos, antes de decretar a excomunhão ou de dirigir uma censura contra alguém; publicação de monitória.