Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

À prezada equipe do Ciberdúvidas, minhas cordiais saudações!

Gostava de que me auxiliassem nesta pesquisa: qual a relação entre os vocábulos restaurar/restauração e reformar/reforma? Podem ser palavras sinônimas? (Suas etimologias podem esclarecer algo?) Quais as semelhanças ou diferenças semânticas nessas palavras? Pode-se dizer que «Houve uma reforma religiosa no séc. XVI promovida pelo protestantismo» ou «Houve uma restauração religiosa no séc. XVI promovida pelo protestantismo»? Qual termo será mais bem empregado? Em que casos poderiam ser sinônimos?

Resposta:

Usa-se reforma para referir mudanças na estrutura ou no funcionamento de uma instituição (por exemplo, a Igreja, os diferentes organismos do Estado, as regras da atividade económica) — mesmo que tal tenha tido o intuito de restaurar ou restituir certos procedimentos que se acredita serem bons e terem sido correntes no passado. No plano religioso, a palavra reforma tem sentido próprio: «restabelecimento da disciplina, numa ordem religiosa» (Dicionário Houaiss). Em relação ao protestantismo, fala-se mesmo em Reforma, com maiúscula inicial para evidenciar a importância histórica desse movimento religioso.

Quanto ao termo restauração, não costuma aplicar-se a situações de reforma religiosa, mas, sim, segundo o Dicionário Houaiss, ao «restabelecimento de uma situação histórica (regime político etc.) que ocorreu anteriormente» e ao «ato de reaver a independência ou a nacionalidade perdida» (por exemplo, no caso de Portugal, a Restauração de 1640).

Pergunta:

Pode considerar-se literatura como palavra composta?

A Infopédia refere que vem formada do latim («Do latim litteratūra-, "erudição; ciência relativa às letras"»), e eu não sei com classificá-la!...

Resposta:

A palavra literatura não é uma palavra composta, porque não resulta do processo morfológico mediante o qual se associam palavras ou radicais (cf. Dicionário Terminológico, B. 2.3.2.).

Penso que a pergunta mais pertinente será antes esta: será que literatura é uma palavra complexa? Sim, numa perspetiva sincrónica, porque se pode analisar literatura como palavra derivada por sufixação, que exibe o sufixo -ura, tal como altura, brancura ou gordura. Porém, do ponto de vista etimológico, a verdade é que o vocábulo foi construído por derivação não no português mas no latim — litteratūra, «arte de escrever, escritura; alfabeto; gramática; conhecimentos literários, literatura; instrução, saber, ciência; obras literárias» (Dicionário Houaiss) —, mediante a afixação da forma -ura (que está na origem do sufixo -ura em português).

Trata-se, portanto, de um empréstimo do latim ao português, efetuado por via erudita.

Pergunta:

Gostava de saber como se classifica a palavra além-mar, quanto ao seu processo de formação.

Resposta:

Trata-se de uma palavra composta. Na antiga terminologia gramatical usada em Portugal, classificava-se além-mar como uma palavra composta por justaposição.

Hoje, com a adoção do Dicionário Terminológico, deve dizer-se que este vocábulo é um composto morfossintático, porque associa duas palavras autónomas (além e mar) para formar uma unidade vocabular, com a possibilidade de ocorrer quer como advérbio («fez fortuna além-mar, dizem que no Brasil», dicionário da Academia das Ciências de Lisboa) quer como substantivo, sinónimo de ultramar («os seus primeiros anos foram marcados pela vida no além-mar», idem).

Pergunta:

A esmagadora maioria (mas não a totalidade...) dos especialistas da língua portuguesa condena o uso do neologismo "massivo", justificando que já temos maciço, esta, sim, em português escorreito, a derivação genuína de massa.

No entanto, segundo Conceição Saraiva, "massivo" é legítimo num determinado contexto (v. nota A classificação morfológica de tal), sendo ilegítimo em todas as restantes situações.

Também C. R. (nota Sobre o advérbio de modo maciçamente) faz referência ao uso de "massivo", não como sinónimo de maciço, mas, sim, como «substantivo que representa um conjunto que não é passível de ser dividido em partes singulares que se possam enumerar, contar».

Pergunto então: fará sentido "importar" a palavra para lhe dar apenas o significado restrito descrito pelos dois especialistas citados, sem a aceitar no sentido em que é comummente utilizada? Não poderá também, naquele caso, ser substituída por maciço? Ou então, como em tantos outros casos (até porque já há alguns dicionários que a registam), parar de lutar e aceitar pura e simplesmente a introdução do "massivo" tão do gosto dos nossos jornalistas, que no fundo são os principais responsáveis pela sua generalização?

Há coisas que, por mais que não queiramos, são inevitáveis...

Se até "alcoolémia" e "bué" já vêm registadas nalguns dicionários...

Resposta:

A pergunta levantada pelo consulente parte do seguinte pressuposto: «a palavra importada massivo é incorreta, porque, com ela, se pretende substituir uma palavra portuguesa com tradição que é maciço». Assim é a maneira de ver dos normativistas mais estritos; no entanto, no âmbito de domínios especializados, recorre-se frequentemente à importação de palavras como forma de criar terminologias que não deem azo a ambiguidades. O uso de massivo vai, pois, ao encontro desta necessidade, tendo sobre maciço a vantagem de se referir univocamente ao «substantivo que representa um conjunto que não é passível de ser dividido em partes singulares que se possam enumerar, contar» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).1 Não obstante, diga-se que este uso especializado não tem necessariamente de legitimar as ocorrências de massivo noutros registos, onde se deverá continuar a dar preferência a maciço.

Sobre bué, o facto de se encontrar dicionarizado não equivale a admiti-lo em todos os contextos. Se assim fosse, a palavra poderia ser usada em registo formal, podendo, por exemplo, o presidente da República declarar que a presente crise é «bué difícil», em lugar de «muito difícil» (só o faria excecionalmente, se quisesse adotar um tom jocoso). Assinale-se, aliás, que bué vem classificado como expressão do registo informal ou coloquial, e não como termo aplicável a qualquer registo, conforme se assinala em nota de uso no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e no

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra sprite é masculina ou feminina. Ou seja, diz-se «um sprite», ou «uma sprite»?

Resposta:

Se se refere a um objeto gráfico no âmbito da computação gráfica (cf. artigo da Wikipédia), parece dar-se preferência ao género masculino: «um sprite». Como a palavra aguarda o seu aportugueamento morfológico, é natural que haja ainda oscilações na atribuição de género. Contudo, os artigos da Wikipédia de outras línguas românicas como o espanhol, o catalão, o francês e o italiano mostram que o anglicismo se usa no masculino em todas elas, dando assim força à atribuição do masculino também em português.

Quanto ao conhecido refrigerante Sprite, há oscilações, pelo menos, em Portugal, tendo em conta que a este nome tanto pode associar-se a ideia de «gasosa», «bebida» («bebi uma Sprite») como a de refrigerante («bebi um Sprite»). Contudo, no Brasil, parece dar-se clara preferência ao género feminino, «alinhando-se a palavra com outras bebidas no feminino: a Coca-Cola, a Pepsi-Cola, a vodca, a cerveja, a tônica, a Fanta, a aguardente, a tequila, a cachaça» (comunicação pessoal do consultor Luciano Eduardo de Oliveira).