Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho uma imensa dificuldade de encontrar textos que apresentem fidedignamente a representação fonética do s beirão, o mesmo som que é usado no galego e também em alguns sotaques espanhóis. Até então, baseado no que estudei, o som que parece se assemelhar mais ao s beirão é: /s̺/ (um s com o diacrítico para marcar que é apical), ou seja, sibilante apicoalveolar surda. Gostaria muito do parecer de vocês sobre esse assunto. Já encontrei este som sendo representado como retroflexo /ʂ/, e inúmeras representando este som apenas com um ponto abaixo do s: /ṣ/.

Espero que possam me ajudar.

Resposta:

O símbolo fonético do chamado «s beirão», ou seja, a consoante fricativa apicoalveolar (cf. M. H. Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 43), é o seguinte:

Trata-se de um símbolo que combina [s], que representa uma fricativa alveolar surda, e o diacrítico indicativo de ponto de articulação apical . Este símbolo é utilizado no Handbook of the International Phonetic Association (Cambridge University Press, 1999, pág. 82), na descrição do galego-padrão, que tem esta sibilante, como bem assinala o consulente.

O s apical é característico do português falado em zonas do Centro e Norte de Portugal, e não deve ser condenado como pronúncia defeituosa, como era costume fazer-se em Lisboa. Não faz parte da pronúncia-padrão, mas deve ser aceite como variante legítima.

Pergunta:

É correto dizer-se «ao lado de mim»?

Resposta:

É, mas utilizado com maior hesitação do que «ao meu lado», que é preferível.

Conforme se lê na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 327), de Celso Cunha e Lindley Cintra (estes autores usam o termo pronome possessivo, que abrange o que na terminologia gramatical atualmente usada em Portugal são os pronomes e os determinantes possessivos):

«Em certas locuções prepositivas, o pronome oblíquo, que deve seguir a preposição e com ela formar um complemento nominal do substantivo anterior, é normalmente substituído pelo pronome possessivo correspondente. Assim:

em frente de ti — em tua frente, ou: na tua frente
ao lado de mim = ao meu lado
em favor de nós = em nosso favor
por causa de você = por sua causa

[...]» 

Note-se que Cunha e Cintra apontam casos em que, na locução prepositiva, existe um substantivo (frente, lado, favor, causa) compatível com a ocorrência de um determinante possessivo (meu, teu, seu, etc.). Diga-se ainda que estes gramáticos não parecem rejeitar construções como «ao lado de mim»; apenas afirmam que estas são "normalmente", ou seja, geralmente, substituídas pela construção com o possessivo, o que permite inferir que esta é preferível.

Pergunta:

No Algarve e no Alentejo, ouve-se frequentemente a expressão «estou desejando de» + infinito dum verbo (ex.: «estou desejando de voltar»), no sentido de «estar desejoso de». No entanto, o verbo desejar não é regido da preposição de. Assim, diz-se «eu desejo voltar a casa». É correto/incorreto usar «estar desejando de»? Porquê?

Resposta:

No contexto do português-padrão, é incorreto ou desadequado empregar a construção «estou desejando de». É possível que a ocorrência da preposição de com «estar desejando» seja uma inovação, por analogia com «estar desejoso de». No entanto, no registo informal, em contexto familiar, não vejo razão para não usar a expressão «estou desejando de», cujo registo fica, desde já, aqui feito. Saber empregar com critério as muitas construções e palavras de cunho local é uma maneira de não perder a diversidade cultural associada à própria identidade das comunidades de falantes de português.

Pergunta:

Gostaria de esclarecer uma dúvida quanto à formação da palavra encomendar, visto que já encontrei explicações diferentes em gramáticas diversas.

Obrigada.

Resposta:

Se encontrou diferentes propostas de análise morfológica do verbo encomendar, não admira, porque a análise desta palavra não se apoia apenas na intuição e requer algum conhecimento da sua história. Não faço ideia de quais as gramáticas em causa, mas calculo ser possível que encomendar apareça descrito como derivado de encomenda — classificação que não é a mais adequada, se atendermos à história da palavra, cuja reconstituição não reúne consenso. Com efeito, segundo o Dicionário Houaiss, trata-se de um derivado por prefixação do arcaísmo comendar: «en- + comendar (antigo e desus.) e, este, do lat. commendo, as, āvi, ātum, āre, "depositar, entregar, confiar; recomendar"». O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa confirma aparentemente esta etimologia, embora proponha a associação direta do prefixo en- à forma latina, o que se torna discutível, porque para que um prefixo português se solde a outro elemento é preciso que este tenha já feição portuguesa. Por seu lado, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, parece sugerir que o verbo português é simples adaptação da forma latina hipotética ou reconstruída *incommendare (o asterisco assinala esse estatuto de hipótese ou reconstrução linguística), derivado de incommendātu, «exposto à mercê de alguém». Em suma, acho que este verbo não será o mais adequado para ilustrar os processos produtivos de derivação no português contemporâneo.

Pergunta:

Considerando a Base XV do NAO que estabelece o emprego de hífen nas palavras compostas que designam espécies botânicas e zoológicas (sendo um dos exemplos dados do texto do Acordo feijão-verde, que não é propriamente ume espécie) e que o sentido de casta nas uvas é «grupo de indivíduos (…) que, por alguns caracteres, se distinguem de outros da mesma espécie e podem constituir uma raça ou variedade» – Infopédia):

a) Devemos hifenizar as respetivas designações? Tinta-roriz, touriga-nacional, touriga-franca, malvasia-fina, etc.?

b) Se sim, no caso de Cabernet Sauvignon, hifeniza-se ou, tratando-se de uma importação, põe-se entre aspas sem hífen?

Votos de sucesso para campanha de recolha de fundos para manter o nosso Ciberdúvidas em ação.

Resposta:

Considerando que, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, casta é, em enologia, o termo aplicável à «qualidade aromática que cada uma das variedades de uva transmite ao vinho que origina» e que, no domínio da biologia, a mesma palavra pode designar essas variedades, já que tem a aceção de «grupo de indivíduos (animais ou vegetais) que, por alguns caracteres, se distinguem de outros da mesma espécie e podem constituir uma raça ou variedade», os nomes das diferentes castas de uvas que forem compostos devem escrever-se com hífen. Sendo assim, tinta-roriz, touriga-nacional, touriga-franca, malvasia-fina serão as formas mais corretas, à luz da Base XV do novo Acordo Ortográfico, muito embora eu não encontre estas formas registadas em dicionário nem em vocabulário ortográfico atualizados.

Note-se que tanto no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (DLPPE) como no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, figura a forma touriga nacional, sem hífen, não como entrada mas como termo integrado na definição da entrada touriga. Este facto poderia indicar que os termos em discussão podem usar-se sem hífen, mas, no DLPPE, o registo de malvasia-do-bairro e malvasia-grossa, termos hifenizados que designam variedades de casta designada por malvasia, justificam as grafias acima propostas.

Quanto a castas com nome estrangeiro, não sei de critério generalizável. O mais que p...