Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Posso usar «tanto... quanto» com uma negativa (Ex.: «Tanto eu quanto ele não tínhamos dinheiro»)? Não é obrigatório ser: «Nem eu nem ele tínhamos dinheiro»?

Resposta:

Não é obrigatório. Estão, portanto, corretas as seguintes construções:

1) «Tanto eu quanto ele não tínhamos dinheiro.»

2) «Tanto eu como ele não tínhamos dinheiro.»

3) «Nem eu nem ele tínhamos dinheiro.»

Pergunta:

Num mesmo texto, as palavras Almada, pintor e artista, referentes a Almada Negreiros, são correferentes não anafóricos, ou podemos considerar que se trata de coesão lexical por substituição?

Qual a diferença entre ambas?

Grata.

Resposta:

No caso de pintor e artista, trata-de termos correferentes não anafóricos, porque a sua relação depende do nosso conhecimento do mundo (conhecimento enciclopédico): se Almada Negreiros (1893-1970) não tivesse sido pintor e artista, não poderíamos fazer-lhe referência pela menção dessas atividades.

Já o uso de Almada para referir Almada Negreiros é diferente, porque é a simples repetição de parte do nome, como mecanismo de coesão lexical.

Sobre este assunto, vale a pena recuperar as definições e exemplos da antiga Terminologia Linguística para os Ensino Básico e Secundário (a controversa TLEBS), de cuja revisão resultou o Dicionário Terminológico:

Correferência não anafórica

«Duas ou mais expressões linguísticas podem identificar o mesmo referente, sem que nenhuma delas seja referencialmente dependente da outra. Fala-se, então, de correferência não anafórica [...]. No texto "O Rui foi trabalhar para África. Finalmente, o marido da Ana conseguiu concretizar o seu sonho", as expressões "O Rui" e "o marido da Ana" podem ser correferentes, ou seja, podem identificar a mesma entidade, sem que nenhuma delas funcione como termo anafórico. Naturalmente, só informação de carácter extralinguístico permite afirmar se há ou não correferência entre as duas expressões nominais» (ortografia atualizada).

Coesão lexical

«Mecanismo de coesão textual que envolve a repetição da mesma unidade lexical ao longo do texto ou a sua substituição por outras unidades lexicais que com ela mantêm relações semânticas de natureza hierárquica (hiponímia, hiperonímia) ou não hi...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a origem e significado do dito: «dia de São Nunca à tarde».

Obrigado.

Resposta:

A expressão em apreço, escrita «dia de São Nunca à tarde» [ou, melhor, com «à tarde» entre parênteses, «dia de São Nunca (à tarde)], vem registada no Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Notícias Editorial, 2000), de Orlando Neves, como o mesmo que nunca, sem qualquer comentário sobre a origem da expressão. Não conheço fontes que permitam esclarecer a génese desta expressão.

 

N. E. (24/11/2020) – Sobre a sua situação de uso, a expressão «dia de São Nunca à tarde» ocorre geralmente a propósito daquilo que nunca acontecerá ou de um dia indeterminado (cf. Guilherme Augusto Simões, Dicionário de Expressões Populares, Lisboa, D. Quixote, 1993). Sobre o sentido etimológico da expressão encontram-se algumas hipóteses, por confirmar em bases mais sólidas: por exemplo, no artigo "São Nunca", da Wikipédia em português, cujas referências são pouco ou nada claras. O apontamento "A origem da expressão 'Dia de São Nunca'", na página Mitologia em Português, não explicando a sua origem factual (a qual será difícil de determinar, dado o anonimato em que emergem as expressões idiomática). sugere que a expressão terá sido motivada pelo calendário religioso (santoral) ou versões deste, de cariz mais popular, em que cada dia é...

Pergunta:

Poderiam traçar de forma completa as diferenças e as igualdades entre dizer e falar, apresentando exemplos em cada caso?

No Brasil, não é raro na linguagem coloquial as pessoas usarem o verbo falar no lugar do verbo dizer, fazendo uma troca infeliz, pois acabam falando errado. Isto aconteceria aí em Portugal, ainda que seja em casos excepcionais?

É verdade que tal substituição ocorria às vezes em escritores antigos e na linguagem antiga, talvez medieval?

Muito obrigado.

Resposta:

No português normativo tanto de Portugal como do Brasil, mantém-se o contraste entre falar e dizer, que são verbos com comportamentos sintáticos diferentes:

a) falar é intransitivo («ele ainda não falou»), transitivo direto («falo português»)1 ou transitivo indireto («a Rita falou ao/com o João», «falou nisso», «falou disso/de ti», «falou sobre a atual crise»);

b) o verbo dizer é transitivo, podendo o complemento direto ter a forma de uma expressão nominal («A Joana disse um disparate») ou uma oração («ele disse que a Joana fez um disparate»).

No entanto, coloquialmente, mesmo em Portugal, é frequente achar ocorrências de falar associadas a orações completivas: 

«Falou que, para chegar à maioria absoluta nas próximas eleições, é preciso arrepiar caminho em determinadas condições. Que condições são essas?» (jornal português Público, no Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira)

Trata-se de um uso não aceite pela norma.

Quanto à progressiva substituição de dizer por falar, não encontro fontes que me facultem dados sobre a sua história.

1 Mário Vilela, em "A `cena´da «acção linguística» e a sua perspectivação por dizer e falar" (Revista da Faculdade de Letras "Línguas e Literaturas...

Pergunta:

Gostaria de saber por que razão o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora registam a pronúncia [gwi] e se esta é a única pronúncia correta, tendo em conta a forma como pronunciamos a palavra de origem, bilingue.

Obrigada.

Resposta:

Os dois dicionários em causa apresentam quer bilingue quer bilíngue, que são formas corretas, mas o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa indica que a primeira das formas é preferida pela norma de Portugal, enquanto a outra é usada no Brasil (de facto, é mesmo a única registada na dicionarística brasileira; cf. Dicionário Houaiss e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras).

Confirmando o uso atribuído a Portugal, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora também regista bilingue (transcrição fonética [biˈlĩgɨ]) e bilíngue (transcrição fonética [biˈlĩgwɨ]), mas, dado que esta segunda entrada remete para a primeira, presume-se que se considera bilingue como forma preferível em Portugal.