Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber por que razão o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora registam a pronúncia [gwi] e se esta é a única pronúncia correta, tendo em conta a forma como pronunciamos a palavra de origem, bilingue.

Obrigada.

Resposta:

Os dois dicionários em causa apresentam quer bilingue quer bilíngue, que são formas corretas, mas o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa indica que a primeira das formas é preferida pela norma de Portugal, enquanto a outra é usada no Brasil (de facto, é mesmo a única registada na dicionarística brasileira; cf. Dicionário Houaiss e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras).

Confirmando o uso atribuído a Portugal, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora também regista bilingue (transcrição fonética [biˈlĩgɨ]) e bilíngue (transcrição fonética [biˈlĩgwɨ]), mas, dado que esta segunda entrada remete para a primeira, presume-se que se considera bilingue como forma preferível em Portugal.

 

 

Pergunta:

Em tempos [...], perguntei sobre a origem do topónimo/antropónimo Góis. Sabe-se que o vocábulo gói quer dizer não judeu, aquele que não pertence à comunidade israelita. Tendo em vista a perseguição aos judeus em 1496, por exemplo, muitos deles homiziando-se no interior de Portugal, o nome Góis não estaria ligado a esses factos?

Meus cumprimentos pelo vosso trabalho, e obrigado.

Resposta:

A discussão da origem do topónimo Góis (Coimbra) não confirma nem uma eventual relação com a língua hebraica nem com a comunidade judaica portuguesa. José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa), citando outros autores, assinala a hipótese de este nome encontrar paralelo na toponímia dos Baixos Pirenéus (França), junto a Espanha, o que significa poder supor-se uma origem basca ou ibérica, tendo em conta o apelido/sobrenome basco Goyeche ou Goieche, etimologicamente «casa de cima» (goi, «cima», e etxe, «casa»). Também apresenta uma etimologia alternativa, de J.-M. Piel, que defende uma origem germânica (de um nome próprio Goi-, do gótico gauja, pela forma patronímica Goius).

No entanto, um outro estudioso da etimologia dos nomes de lugar, A. Almeida Fernandes (Toponímia Portuguesa: exame a dicionário, 1999), contesta as hipóteses avançadas por Machado, propondo outra explicação. Góis terá de ser interpretado em associação com Goios (Esposende e entre Vila Nova de Cerveira e Caminha), que remonta a Gaudiosus, que Fernandes interpreta como «rochoso»:

«Temos de curvar-nos à evolução lat. *cotiosu (do lat. cote-) > *goudiosu > *gouiosos > "Góios" (retracção tónica de Goiós, para evitar a confusão com os diminutivos em -ó, que eram o que mais de díspar haveria da impressiva ou dilatada paisagem rochosa.)»

Em suma, se existem topónimos de origem hebraica e...

Pergunta:

Tenho uma dúvida em relação à formação dos plurais. Se tenho a palavra cão, cujo plural é cães, que regra gramatical me indica isso? Porque não pode ser cãos?

Como saber quando a palavra passa ao plural com o sufixo -ãos, -ães ou -ões?

Resposta:

Não existe uma regra que se aplique intuitivamente, conforme já se explicou noutras respostas (ver Textos Relacionados). Sendo assim, não pode ser "cãos" nem "cões", por razões históricas.

O plural -ães relaciona-se coma terminação latina -anes, que evoluiu, por exemplo, como -anes em espanhol (capitán, capitanes). Sabendo que, em latim vulgar, a palavra cane, «cão», tinha por plural canes, o plural de cão só pode ser cães.

Pergunta:

Qual a tradução para a palavra gamification? Será gamificação?  E, se sim, porque é que ainda não aparece nos dicionários? Como posso saber se é legítimo usar numa dissertação de mestrado?

Muito obrigado!

Resposta:

No contexto de áreas especializadas, não se pode esperar que os dicionários gerais sejam esclarecedores, até porque estes tendem a acolher sobretudo o vocabulário mais estável. Quanto à boa formação de "gamificação", há a dizer que a palavra é possível, muito embora o radical que é escrito gam- se leia supostamente como "gueim", isto é, como se pronuncia em inglês, o que levanta alguns problemas de aceitabilidade, porque esta grafia foge aos princípios que definem a relação entre a ortografia e a fonética do português. Em alternativa, dado usar-se em espanhol ludificación, jueguización e juguetización (ver Wikipédia em espanhol) e, em francês, ludification (Wikipédia em francês), porque não formar "ludificação" ou "joguização"? Estas formas neológicas têm a vantagem de ter radicais de origem latina e, por isso, enquadram-se melhor na tradição de formação de palavras do português.

Pergunta:

Considera-se que pertencem a uma família de palavras as palavras com o mesmo radical. Será que campeão é da família de campo, ou atravessar é da família de travesseiro?

Resposta:

Tendo em consideração que a família de palavras é definida pelas palavras que têm em comum um mesmo radical, pode dizer-se que, por razões históricas, campeão é da família de campo, e travesseiro, da família de atravessar. Mas vale a pena deixar breves comentários:

1. A palavra campeão está muito indiretamente ligada a campo, porque, embora tenha um radical de origem latina (camp-), terá aparecido em português como um empréstimo, conforme explica o Dicionário Houaiss: «[do] germ[ânico] ocid[ental] *kampjo, der[ivado] de kamp, "campo de batalha", este do lat[im] campus; talvez pelo fr[ancês] champion [...].»

2. Quanto a travesseiro, «almofada [...] que se coloca à cabeceira da cama e serve para descansar a cabeça, ao dormir», trata-se de um derivado não de atravessar, mas de travesso, também segundo a mesma fonte: «travesso + -eiro; o nome advém do fato de ser uma espécie de almofada que se põe na cama atravessada em relação ao comprimento da mesma.»