Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sei que não é a primeira vez que esta dúvida é exposta, mas, perante o que li aqui e noutros sítios, gostaria de ver esclarecido o seguinte: Se em Portugal a maioria das pessoas pronuncia "Egipto" (digo a maioria porque tenho perguntado às pessoas com quem me cruzo como pronunciam a palavra), por que razão nos pedem para escrever "Egito"? Tive oportunidade de ter uma cadeira de Introdução à Linguística, matéria que sempre me apaixonou, e não me faz qualquer sentido que seja a escrita a influenciar uma língua, quando é o contrário que tem vindo a acontecer desde que os povos começaram a comunicar. Ainda acreditei que se tratasse de uma má interpretação do Acordo Ortográfico, como acontece frequentemente com a palavra facto ou contacto, mas pelos vistos não é o caso. Não sou purista da língua e concordo com muitas das novas regras. Esta choca-me.

Obrigada pelos vossos esclarecimentos, que são sempre muito úteis, e por continuarem a defender este nosso património.

Resposta:

Embora atualmente muitos falantes pronunciem "Egipto", com o segmento [p] claramente articulado, a verdade é que se tem considerado correta a pronúncia sem esse segmento, a qual, aliás, se encontra registada por António Emiliano em Fonética do Português Europeu: Descrição e Transcrição (Guimarães Editores, 2009, pág. 92). Refira-se ainda que, muito antes do atual acordo, as Bases Analíticas do Acordo de 1945 indicavam Egipto como um caso em que a letra p era muda (Base IV):

«Conservam-se quando, sendo embora mudos, ocorrem em formas que devem harmonizar-se graficamente com formas afins em que um c ou um p se mantêm, de acordo com um dos dois números anteriores, ou em que essas consoantes estão contidas, respectivamente, num x ou numa sequência ps. Escreve-se, por isso: [...] Egipto, como egípcio; [...]»

Desta passagem, depreende-se que, há quase 70 anos, se considerava que Egipto se pronunciava "Egito", embora se escrevesse com p mudo para estar em sintonia com egípcio.

Estes dados sugerem, portanto, que a pronúncia com p ou surgiu depois dos anos 40 do século passado ou já existia como variante não sancionada pela norma. É possível que o aparecimento desta variante tenha sido suscitado pela ortografia, porque nas sociedades modernas a aprendizagem da escrita e da leitura motiva certas soluções fónicas por parte dos falantes menos familiarizados com a pronúncia culta tradicional.

 

...

Pergunta:

Qual é o correto: «Setor/Departamento de Suprimentos», ou «Setor/Departamento de Suprimento»? 

Sempre falei «suprimentos», e hoje meu líder comentou com a equipe que «suprimento» (no singular) é o correto. Fiquei curiosa... Está certa essa afirmação, ou ambas as formas estão corretas? 

Agradeço desde já pela atenção dispensada.

Resposta:

As duas formas estão corretas: segundo o Dicionário Houaiss (ver também iDicionário Aulete), no português do Brasil, suprimento é usado quer como «ato ou efeito de doar, fornecer ou entregar auxílios, provisões, materiais etc.; provimento, fornecimento, provisão» quer como «aquilo que se doa, fornece ou entrega». Deste modo, um departamento ou setor que faz suprimento é também um departamento ou setor que entrega suprimentos. De qualquer forma, pesquisas na Internet apontam para que a palavra se use mais no plural quando associada a setor ou departamento.

Pergunta:

Gostaria de saber exemplos de adjetivos uniformes tais como o adjetivo simples.

Resposta:

Não são muitos os adjetivos invariáveis tanto em número como em género: além de simples, temos reles, isósceles e uma série de adjetivos terminados em -as, frequentes no registo informal e normalmente usados depreciativamente, como medricas, «medroso», ou piegas, «que se lamenta demasiado» (cf. Dicionário Priebram da Língua Portuguesa). Certos adjetivos, encarados ora como compostos ora como derivados prefixados, podem também não fletir em número: multiúsos (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; grafia registada também no Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, e tendo em conta o modelo de miúdo e fiúza, preferível a multiusos, proposta por outros vocabulários ortográficos). Também palavras mais consensualmente analisadas como derivadas por prefixação não variam nem em género nem em número; p. ex., antirrugas («creme/máscara antirrugas»). Finalmente, refira-se que os adjetivos compostos referentes a cores «[...] são invariáveis quando o segundo elemento da composição é um substantivo: uniformes verde-oliva; saias azul-ferrete; canários amarelo-ouro; blusas vermelho-sangue.» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 253).

Pergunta:

Gostaria de saber que grafia usar quando me refiro às capitais da República da Moldávia e da Transdniéstria (República Moldava Transdniestriana)? No caso da capital moldava, devo usar "Quixinau", "Quichinau" (que me parece errada, tendo em conta o que o som do ş em romeno/moldavo é /ʃ/ e não /tʃ/), Chişinău ou "Chisinau" (sem diacríticos)? E quanto à forma russa Кишинёв (Kishinev? Quixineve?) Devemos considerá-la desatualizada? Quanto à capital do Estado com reconhecimento internacional limitado da Transdniéstria? Será Tiraspol, ou Tiráspol, com acento?

Muito obrigado pelo esclarecimento.

Resposta:

A capital da Moldávia (ou República da Moldova, para efeitos protocolares, segundo o Código de Redação Interinstitucional – CRI – da União Europeia para a língua portuguesa), já tem, em português, a forma Quichinau (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto Editora, na versão impressa, e CRI), adaptação do romeno Chişinău. Assinale-se, no entanto, que a Infopédia apresenta a forma Chisinau, sem os diacríticos do romeno, mas que pressupõe a leitura de ch como se faz em romeno, isto é, como o valor de [k].

É verdade que, do ponto de vista filológico, faria mais sentido escrever "Quixinau", porque x é tradicionalmente a letra que representa a consoante fricativa pré-palatal surda [ʃ], e não ch, que se reserva para a transliteração de grafemas representantes da consoante africada surda [tʃ]. No entanto, a forma Quichinau justifica-se pela desvantagem de o grafema x ter várias leituras e de o uso brasileiro de tch (tcheco, preferida a checo) deixar implícito o reconhecimento de ch como representação de [ʃ].

Refira-se ainda que a forma russa não conseguiu na atualidade ser a base da forma portuguesa, pelo que não se trata de uma questão de estar ou não desatualizada. Mas, mesmo que se considerasse tal forma, nem "Quixineve" nem "Kishinev" pareceriam boas opções em português: a segunda pelo aspecto gráfico, e a primeira por não corresponder à pronúncia russa, que, transcrita ao alfabeto latino e conforme as regras ortográficas da nossa língua, daria "Quichiniove" (ou "Quixioniove"), com ditongo e

Pergunta:

Na expressão «a mais bonita», qual a categoria de «a»?

Resposta:

A Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, classifica esse a como artigo definido (pág. 261):

«O [grau] SUPERLATIVO RELATIVO é sempre analítico.

O DE SUPERIORIDADE forma-se pela anteposição do artigo definido ao comparativo de superioridade:

Este aluno é o mais estudioso do colégio. [...]

O DE INFERIORIDADE forma-se pela anteposição do artigo definido ao comparativo de inferioridade:

Este aluno é o menos estudioso do colégio. [...]»