Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se a frase «Deveria ter trago a carteira» é uma frase que se possa considerar certa.

Obrigada.

Resposta:

Não, deve dizer e escrever «ter trazido», porque o particípio passado de trazer é trazido.

A forma participial "trago", tal como "chego", não é aceite pela norma, mas não é desconhecida da linguística descritiva, por exemplo, em estudos sobre o português do Brasil. Leia-se o seguinte comentário da investigadora Lúcia Lobato ("Sobre a Forma do Particípio do Português e o Estatuto dos Traços Formais", DELTA vol. 15 n. 1, São Paulo, fevereiro/julho 1999):

«[Existe a] criação espontânea, na língua oral, de formas novas de particípio, que, no entanto, causam riso. Barbosa (1993) cita chego, espalho, perco, prego, trago, que formam pares com chegado, espalhado, perdido, pregado, trazido. Mary Angotti (c. p.) atestou o par compro/comprado ("A diretora tinha compro os carimbos e não chegou até hoje"). Essas formas não têm apresentado flexão, em virtude de até agora só terem ocorrido em contextos com ter/haver. [...]»

No entanto, este tipo de particípios curtos, com acento tónico no radical (rizotónicos), é conhecido no português de Portugal, em modalidades rejeitadas ou menos aceites pela norma, se bem que não exatamente nos mesmos verbos (caçado e "caço", cortado e "corto") nem exatamente com a mesma vogal ...

Pergunta:

Gostava de saber se a palavra defenestrar existe e, caso exista, qual o seu significado.

Resposta:

Defenestrar é um verbo transitivo («defenestrar alguém») que significa «lançar violentamente de uma janela ou varanda para a rua» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora) ou, em sentido figurado, «livrar-se de alguém» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Os dicionários gerais divergem quanto à etimologia deste verbos: uns, como o Dicionário Houaiss, consideram que se trata de um empréstimo do francês («fr. défenestrer (1564), "retirar as janelas de" (1863), "atirar alguém ou algo pelas janelas" [...], der[ivado] de dé- + fenêtre (lat. fenestra, ae, "janela") [...]»); outros, como o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, atribuem-lhe origem latina, relacionando-o com defenestrāre. De qualquer forma, é plausível que o verbo seja uma criação francesa erudita com base no latim, atendendo a que o aparente derivado defenestração tem boas hipóteses de ser aportuguesamento de uma palavra francesa alusiva à Guerra dos Trinta Anos, conforme se anota no Dicionário Houaiss:

«[Do] fr[ancês] défénestration (1838), "ação de jogar algo ou alguém pela janela", der[ivado] do v[elho] fr[ancês] défénestrer + -(a)tion; voc[ábulo] esp[ecialmente] us[ado] com referência ao episódio célebre de 23 de maio de 1618, na história tcheca, quando revoltosos boêmios invadiram o castelo de Hradsin, interromperam uma reunião entre comissários imperiais e deputados do Estado e, em seguida, lançaram dois comissários e seus secretários pela janela; o fato...

Pergunta:

É legítima a palavra desmoralizante?

Só encontro dicionarizada (pelo menos no Priberam) a palavra desmoralizador.

Obrigado!

Resposta:

É legítima. Note que encontra moralizante no dicionário que refere. Ora, se este dicionário admite moralizante como o mesmo que moralizador, que também atesta, e, por outro lado, acolhe desmoralizador, não parece haver impedimento para a formação de desmoralizante. Os dicionários nem sempre registam todos os potenciais derivados de uma palavra, mas, já agora, refira-se que o Dicionário Houaiss acolhe tanto desmoralizador como desmoralizante.

Pergunta:

Há alguma regra para a utilização dos sufixos -ção e -mento na formação de substantivos?

Exemplos: manifestar + -ção = manifestação

consentir + -mento = consentimento

Resposta:

Não há regra que determine quando usar -ção ou -mento: muito depende da escolha por um ou outro sufixo em dado momento da história da língua e da fixação dessa escolha no uso. Por exemplo, para designar o ato de afundar, diz-se afundamento, e não *"afundação"; mas para nomear o processo de evacuar, não se usa *"evacuamento", mas, sim, evacuação. Há também casos, em que o léxico disponibiliza os dois derivados, muitas vezes com significados ligeiramente diferentes: abonação e abonamento (o primeiro tem mais aceções que o segundo; cf. Dicionário Houaiss).

Note-se que estes sufixos se juntam ambos a um tema verbal (a forma que fica depois de retirado o morfema -r, relativo à flexão de infinitivo) para formar substantivos:

organiza(r)+ -çãoorganização

estaciona(r) + -mentoestacionamento

Pergunta:

Como se lê «ano 1800»?

Qual a forma correta? «Ano mil oitocentos», ou «ano mil e oitocentos»?

E porquê?

Muito obrigada.

Resposta:

Deve dizer «ano mil e oitocentos»1. Note que, quando se segue outro algarismo às centenas, desaparece a conjunção e entre os milhares e as centenas, para reaparecer entre estas e as dezenas ou as unidades.

1800 = «mil e oitocentos»
 
1801 = «mil oitocentos e um»

Sobre o uso da conjunção com numerais, vale a pena transcrever o que Paul Teyssier diz no seu Manual de Língua Portuguesa (Coimbra, Coimbra Editora, 1989, págs. 181-182; manteve-se a ortografia original):2

«— E figura entre as dezenas e as unidades e entre as centenas e as dezenas, p. ex. 47: quarenta e sete; 375: trezentos e setenta e cinco.

E não figura entre os milhares e as centenas, excepto quando a mil se segue um algarismo simples, p. ex.:

4.226: Quatro mil duzentos e vinte e seis

1.400: mil e quatrocentos

1.030: mil e trinta

— Nos números muito grandes suprime-se o e entre os grupos de três algarismos, p. ex.: 628.418.639.426: seiscentos e vinte e oito biliões quatrocentos e dezoito milhões seiscentos e tinta e nove mil quatrocentos e vinte e seis.

— Ex. de cardinais:

36: trinta e seis; oitenta e uma casas [...]; duzentos quilómetros («200 km»).