Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é o significado/interpretação mais precisa do dito: «nem um órgão da Sé»?

Agradeço a ajuda.

Resposta:

Não encontro dicionarizada a expressão «nem um órgão da Sé». No entanto, ela ocorre em Arca de Noé – III Classe, uma obra do escritor português Aquilino Ribeiro (1885-1963):

«Daí a instantes rebentava um medonho ressonar. Devia ser o cão que passara a noite a correr pela quinta com medo que os larápios lhe fossem à horta ou ao meloal! Nem um órgão da Sé. [...]»

Neste contexto, «nem um órgão da Sé» é interpretável como «nem um órgão da Sé fazia tanto barulho (como o cão que ressonava)» ou como «alguém ressonava tanto que nem um órgão da Sé consegue fazer mais barulho». A expressão é, portanto, usada como hipérbole e constitui um termo de comparação, referente aos sons de grande intensidade produzido por qualquer órgão de uma sé, isto é, de uma «igreja episcopal ou patriarcal; catedral» (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora).

Pergunta:

De acordo com o Dicionário Terminológico, existe agora a «classe dos quantificadores», que partilha com os determinantes a característica de anteceder um nome.

Sendo que, na frase «Os quatro amigos...», «quatro» é um quantificador numeral, na frase «Quatro alunos foram estudar e quatro foram brincar», continuamos, no segundo «quatro», a ter um quantificador numeral com um nome subentendido? Não há pronomes numerais, certo?

Muito obrigada!

Resposta:

No caso da segunda ocorrência de quatro em «Quatro alunos foram estudar e quatro foram brincar», considera-se que se trata efetivamente de um quantificador numeral com elipse ou omissão do nome (cf. Olga Azeredo et al., Gramática Prática do Português, Lisboa Editora, 2011, p. 195).

Pergunta:

Gostaria de saber a origem do apelido Elias em Portugal.

Grato pela atenção.

Resposta:

Tem origem no nome próprio Elias, tal como muitos outros apelidos/sobrenomes. Este nome tem origem no hebraico Eliah, que significa «o senhor (é) Deus» ou «Deus é Jehovah»1, e foi transmitido ao português pelo grego (H)Elías e pelo latim (H)Elīas (José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa). A sua popularidade é devida ao profeta bíblico assim chamado. Em Portugal, nos tempos da Reconquista medieval, o uso do nome Elias está documentado como patronímico, quando antecedido do elemento árabe ben ou iben, «filho» (Machado, op. cit.).

1 O autor poderia ter usado a forma Jeová, mais de acordo com os princípios da ortografia do português. Note-se que outras fontes interpretam o nome como «o meu deus é Jehovah (ou Jeová)».

Pergunta:

A expressão «escrever à mão» tem mesmo crase, como tantas vezes vejo escrita? Se realmente tivesse, teríamos de dizer «escrever ao lápis» em vez de «escrever a lápis», para manter a coerência gramatical. Ou estou enganado?

Resposta:

Trata-se de expressões típicas do português, às quais não se pode exigir muita lógica, porque são resultado de processos históricos que podem ser fortuitos. No caso em apreço, há, mesmo assim, alguma lógica, porque se diz «escrever à mão», por oposição a «escrever à maquina» ou «escrever ao computador». «Escrever com lápis» é já uma especificação de «escrever à mão». Note ainda que, pelo menos, em Portugal, se usa «escrever a caneta/a lápis/a tinta». A respeito do português do Brasil, diga-se que igualmente se regista o uso de «escrever a lápis», sem artigo definido, exemplificando o uso da preposição a para exprimir meio, instrumento e modo (Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 307).

Cf.: Escrever à mão, porque não?

Pergunta:

Gostava de saber o significado e a origem da expressão «pergunta calista». Encontrei-a na crónica Sonetos a Cristo, de Lobo Antunes. Nunca a tinha ouvido nem a encontrei nos dicionários que consultei.

Obrigada.

Resposta:

Pelo contexto, infere-se que calista seja o mesmo que  «irritante», «maçadora», «tonta». Quanto à sua génese, aceitando que se trata de uma criação literária, sugiro que calista seja a conversão em adjetivo do substantivo calisto, «o indivíduo a cuja presença o jogador que está infeliz atribui a sua má sorte (António Morais da Silva, Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa; neste dicionário, também «género de aves passeriformes», «género de insetos coleópteros», «pequeno copo ou cálice» — como termo da gíria —, «dose de bebida», «cadernos de apontamentos»). É possível que calista ocorra também como alusão a calina, feminino do adjetivo calino, «que diz disparates», «estúpido, bronco», «indolente» e, como regionalismo transmontano, «quente» (a palavra é usada igualmente como substantivo, nas aceções de «indivíduo parvo, ingénuo», idem).