Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Num texto do Padre António Vieira [...], lê-se uma descrição do pecado que ele compara a uma cara horrível com «a garganta carcomida de alparcas». Qual o significado de alparcas? No Houaiss, no Aurélio e em outros dicionários só encontrei o sinónimo alpargatas, que, obviamente, não faz sentido no texto do Vieira.

Resposta:

Não é "alparcas", mas, sim, alporcas.

Trata-se de um erro de edição ou transcrição do texto consultado, em relação ao original de António Vieira (1608-1697), o Sermão da Publicação do Jubileu. O que se lê efetivamente é «garganta carcomida de alporcas». Alporca significa «escrófula» e tem origem em al- associado à palavra de origem latina porca, ae, «sulco, rego por onde escorrem as águas» (Dicionário Houaiss).

A palavra alporca é também sinónimo, no domínio da agricultura, de mergulhia, alporque ou alporcamento (estes dois vocábulos com o mesmo radical de alporca), «técnica de multiplicação vegetativa em que o caule ou ramo rastejante é coberto de terra, induzindo o enraizamento, e depois separado da planta que o originou», e, como termo relacionado com infectologia, significa o mesmo que «tuberculose linfática», «inflamação dos gânglios linfáticos cervicais, devida à tuberculose» (idem). No Diccionario de Arabismos (Editorial Gredos), de Federico Corriente, atribui-se etimologia híbrida a alporca, uma vez que o elemento al- remonta ao artigo árabe al- (presente em vários arabismos: alguidar, alqueire, alface), e porca tem radical latino, o que sugere que a palavra tenha surgido em português por transmissão de um dialeto moçárabe. Regista-se também o vocábulo derivado alporquento, «escrofuloso» (Dicionário Houaiss e Corriente, op. cit.).

Pergunta:

Envolver é um verbo com dois particípios passados: um regular – envolvido – e outro irregular – envolto.

O particípio regular emprega-se na voz activa, ou seja, acompanhado dos verbos auxiliares ter ou haver. Ex.:

«Ela está envolta no caso Quim Ribeiro.»

O particípio irregular emprega-se na voz passiva, ou seja, acompanhado dos verbos auxiliares ser ou estar. Ex.:

«Eu tinha-me envolvido com a Mónica.»

Na revista Sonangol Notícias de 2011 [p. 14], porém, leu-se esta informação:

«Em todas as áreas de negócio nas quais a empresa está "envolvida", a visão empresarial pauta-se pela eficiência e competência, alcance de uma posição de referência no mercado e actuação de acordo com os padrões internacionais.»

Tirem (vocês) suas conclusões se a revista Sonangol Notícias acertou ou errou!

Resposta:

Embora se diga geralmente que um particípio passado regular se usa com o auxiliar ter (ou haver, certos registos) e um particípio passado irregular se associa aos auxiliares ser ou estar, acontece que envolvido, particípio passado de envolver, é uma exceção e é compatível com todos os auxiliares. É o que Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora Unesp, 2003), aponta:

«1. A forma envolvido é usada com todos os auxiliares. Quase pedi desculpas a Eurípides e Lutércio por -los ENVOLVIDO em encrencas alheias [...]. Francisco de Melo Franco já se havia ENVOLVIDO com o tribunal do Santo Ofício em 1779 [...] E, como a desgraça, quando acontece, vem aos cachos, menos de um ano depois Terry foi ENVOLVIDO na história do assassino Charles Manson. [...] O Gregório está ENVOLVIDO na morte do major Vaz. [...]

«2. A forma envolto é usada com os verbos ser e estar. O rosto liso como o marfim era ENVOLTO pelos cabelos ondulados, e por detrás da orelha brotava a flor de jambo [...]. O consumo excessivo de vitaminas, especialmente A e E, ainda está ENVOLTO em dúvidas. [...]»

 

Pergunta:

Está correto dizer «um par de óculos» quando nos referimos a uma unidade? Em inglês, o correto é dizer «a pair of glasses», porque existem duas hastes e dois olhos.

Agradeço.

Resposta:

Está correto, porque óculos pressupõe historicamente o singular óculo, que não significa «olho», mas que é usado na aceção de «luneta», «lente». Sendo assim, e dado que se trata de duas lentes presas por uma armação, faz todo o sentido falar num «par de óculos». Refira-se, aliás, que «par de óculos» está dicionarizado, por exemplo, como subentrada de óculos no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. O que é erro é o uso de «um óculos», conforme se comenta no Dicionário Houaiss (s.v. óculo, onde também se considera correta a expressão «um par de óculos»): «[é] erro a discordância de número (um óculos) que se tem vulgarizado no português coloquial do Brasil (formas corretas: uns óculos, meus óculos, um par de óculos) »

Acrescente-se que o vocábulo óculos faz parte de uma classe de palavras sempre usadas no plural (daí serem também conhecidas como pluralia tantum, isto é, «apenas no plural», segundo a mesma fonte), «que semanticamente podem denotar uma única unidade; trata-se sempre de referentes formados de partes simetricamente duplicadas (p. ex.: tesouras, cuecas, calças, óculos, ceroulas, tenazes)» (idem).

Pergunta:

Qual o termo correcto: reenfoque, ou re-enfoque?

Resposta:

Escreve-se reenfoque, sem hífen, como reexame.

Embora o Acordo Ortográfico de 1990 seja omisso quanto à grafia do prefixo re-, que é hoje especialmente produtivo quando denota a noção de «repetição», o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras, o VOLP da Porto Editora e o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) propõem seguir a tradição ortográfica anterior e declaram adotar o critério de escrever re- sempre sem hífen, justaposto à base da derivação. Devem ainda ter-se em conta os seguintes procedimentos, que vêm também das normas ortográficas anteriores: quando a base a que se justapõe o prefixo começa por h, suprime-se esta letra: reabilitar, reabitar; r ou s iniciais são dobrados: rerratificar, ressaborear. O Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa (VOALP) da Academia das Ciências de Lisboa está em sintonia com os mesmos critérios quanto à ortografia de re-, embora não os explicite em texto introdutório ou explicativo.

Pergunta:

Gostaria de saber qual o plural das palavras cachorro-quente e nego-bom

Obrigada.

Resposta:

Nos compostos em questão, todos os elementos constituintes passam para o plural; portanto, diz-se e escreve-se assim: cachorros-quentes e negos-bons. Sobre cachorro-quente, já se sabe que se trata de «sanduíche de salsicha, geralmente feita num pão alongado» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa); quanto a nego-bom, define-se esta palavra como regionalismo do Nordeste do Brasil, que significa «doce de banana a retalho»1 (Dicionário Houaiss).

1 Ou como também se costuma dizer no Brasil, «a varejo».