Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Hoje, dia 15 de fevereiro, durante a manifestação do povo no Parlamento [de Portugal], cantando Grândola, Vila Morena, a senhora presidente disse: «As pessoas que se retirem ou silenciem-se.» O verbo silenciar é reflexo neste caso? Posso dizer «silenciaram-me», mas não «silenciei-me»! É assim?

Obrigada!

Resposta:

O verbo silenciar, apesar de transitivo, não se usa geralmente como reflexo. Pode até ser usado como sinónimo de calar-se, conforme atesta o Dicionário Houaiss, mas sem pronome reflexo: «Todos silenciaram.» 

No entanto, como indica o Dicionário Priberam, não se exclui a possibilidade de usar silenciar pronominalmente, no sentido de «guardar silêncio», mas este emprego é muito pouco frequente; por exemplo, no Corpus do Português (Mark Davies e Michael Ferreira) são muito escassas as ocorrências de «silenciar-se» (sublinhado meu): «De vez em quando o mar pára, faz-se silêncio e ele engole o que deitara adiante, depois volta a saltar aos sete e sete parecendo jogar o corcovado e então fala grosso cala-se outra vez, cala-se e silencia-se [...]» (Rúben A., Páginas, 1988). Outra ocorrência é do mesmo autor, o que pode sugerir que se trata de uso idiossincrático.

Em suma, não podemos afirmar que estejamos perante um claro erro, muito embora se possa empregar com muito mais confiança as perífrases «fazer silêncio» e «guardar silêncio».

Pergunta:

Eu costumo seguir a regra de escrever estrangeirismos em itálico, mas recentemente fiquei confrontado com a palavra fecho-éclair. O que devo fazer numa situação destas? Escrever só a parte francesa em itálico?

Resposta:

A palavra está realmente registada como um composto que inclui hífen, mas sem itálico nem aspas, pelo menos, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto Editora e no Vocabulário Ortográfico do Português do ILTEC. Os dicionários anteriores à aplicação do acordo não são claros, certamente porque éclair era um estrangeirismo à espera de aportuguesamento, o que explica o algo "experimental" fecho-ecler proposto em 2001 pelo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Esta forma não parece ter vingado, e a incoerência da grafia deste composto subsiste, muito embora não haja nenhuma norma que impeça que o termo "éclair" fique em itálico ou entre aspas, e a palavra fecho, em romano. Trata-se, portanto, de um caso excecional, que ainda aguarda critério adequado.

Pergunta:

Está certo dizer «Voltou com o ex-namorado», significando «Namora outra vez o ex-namorado»? Devo dizer que a primeira frase é muito usual em novelas brasileiras.

Obrigado.

Resposta:

No português do Brasil, «voltar com» é um coloquialismo que significa «reatar uma relação amorosa com alguém». Em Portugal, em registo informal, usa-se geralmente «voltar a andar com». Num registo mais neutro, menos marcado pela familiaridade do tom, são possíveis expressões «ela voltou ao/para o ex-namorado» ou, como propõe o próprio consulente, «ela voltou a namorar (com) o ex-namorado» (neste caso, a preposição é opcional).

Pergunta:

Eu acabei de ler o livro A Capital, de Eça de Queirós. Fiquei na dúvida quando li estas duas frases: «Artur foi à redacção d'O Século» e pouco depois «Artur foi novamente ao Século». Nesta segunda situação, porque não escrever «foi a'O Século»?

Resposta:

A sequência deveria ser «a O Século», sem apóstrofo. O editor preferiu seguir a realidade fonética e escrever «ao Século», provavelmente porque com a preposição a não é possível usar apóstrofo antes de títulos (cf. Acordo Ortográfico de 1990, Base XVII, 1 e Base Analítica XXXV do Acordo Ortográfico de 1945), para marcar contração com o artigo definido, ao contrário do que acontece com de («d´O Século), em (n´O Século) e por (pel´O Século).

Pergunta:

De onde vem o sufixo -elo, muito presente na toponímia do Norte de Portugal e zona de Viseu (Bustelo, Lordelo, Soutelo, Sarzedelo) e quase ausente, pelo que me parece, de outras regiões?

Obrigado.

Resposta:

O sufixo -elo, que permite a formação de diminutivos, foi especialmente produtivo na Idade Média, sobretudo na primeira fase da Reconquista, o que explica que seja frequente nas Beiras e no Norte de Portugal e se torne mais raro nas regiões a sul. Sobre este sufixo, transcrevo o verbete correspondente à entrada -elo do Dicionário Houaiss:

«como dim[inutivo], do lat. -ellu-, em vocábulos do nosso vulg[ar] ou em termos cultos ou científicos em que esse dim[inutivo] é tanto us[ado]. para a função diminutiva mesmo quanto para indicar outra coisa, afim da normal: brocatelo, butelo, carpelo, castelo, chichelo, colunelo, cuitelo/cutelo, doidelo/doudelo, escutelo, farelo, flabelo, flagelo, fuselo, labelo, libelo, magrelo, mezanelo, nigelo, ocelo, orbitelo, pinguelo, pontarelo, saltarelo, vitelo; há formas, entretanto, que são com a tônica fechada por arbítrio da convergência fonética: armazelo, cabedelo, campelo, capelo, cerebelo, corvelo, cotovelo, donzelo, lombelo, ourelo.»

Observe-se, contudo, que o sufixo latino -ellus também perdurou na toponímia do Centro e do Sul de Portugal sob a forma -el, provavelmente de origem moçárabe, ou seja, de origem românica não galego-portuguesa; p. ex.: Pinhel (Guarda), Espichel (Setúbal), Portel (Évora), Ervidel (Beja).