Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É correto dizer «Finalmente, acabarei as minhas aulas» ou «Finalmente, acabarei com as minhas aulas na proxima semana»? Se sim, existe alguma diferença?

Parabéns pelo vosso trabalho.

Resposta:

No sentido de «chegar ao fim» ou «terminar», a melhor frase é a primeira, em que acabar é usado como verbo transitivo direto, isto é, como verbo que é seguido de um complemento direto: «Finalmente, acabarei as minhas aulas.»

O emprego de acabar com a preposição com a reger uma expressão nominal («acabar com alguém/alguma coisa») adquire uma conotação mais drástica, sugerindo que a ação assim referida tem intenção agressiva ou está revestida de certo espírito de confrontação, sendo por isso o verbo interpretado como «abolir», «destruir, matar» (cf. Dicionário Houaiss; exemplos de Énio ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, Porto, Livraria Chardron e Lello e Irmão, 1985):

(1) «Afirmou que ia acabar com a indisciplina que reinava na escola» («terminar», «fazer desaparecer definitivamente»).

(2) «O marquês de Pombal acabou com a distinção cristãos-velhos e cristãos-novos» («abolir»).

(3) «Tudo isto vai acabar comigo» («destruir, matar»).

Pergunta:

Gostaria de saber se se pode utilizar o termo planificação ou será mais correcto planeamento.

Obrigado.

Resposta:

O vocábulo planeamento é vocábulo usado em sentido genérico, muitas vezes em referência à «elaboração de planos governamentais, esp. nas áreas econômica e social» (Dicionário Houaiss; no português do Brasil, o termo registado em dicionário é planejamento, derivado do verbo planejar): «planeamento urbanístico».

Uma planificação tem significado mais concreto e específico, aplicando-se muitas vezes ao plano de uma atividade com marcação da data e do local em que ocorre: «a planificação de uma aula/um curso/um seminário».

Note-se que há expressões em que a ocorrência de uma destas palavras parece dever-se mais à fixação de um uso do que a uma verdadeira motivação semântica. Por exemplo, usa-se planeamento familiar, e não "planificação familiar", muito embora haja dicionários que definam planeamento familiar como uma planificação (sublinhado meu): «planeamento familiar, conjunto de cuidados de saúde que visam a planificação dos nascimentos e do número de filhos de acordo com as necessidades ou os desejos de um casal e tendo em conta as várias condicionantes fisiológicas, clínicas, económicas, culturais ou religiosas da família» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, na Infopédia).

Pergunta:

Será correcto (não sigo o Acordo Ortográfico), em alguma circunstância da escrita, usar as duas palavras «em antes», ou, pelo contrário, o em antecipando a palavra antes é sempre errado?

O que quero perguntar é se apenas se deve escrever antes.

Resposta:

Existe de facto a locução prepositiva «em antes de», seguida de complemento nominal ou oracional, que, pelo menos atualmente, tem emprego muito escasso, dado preferir-se «antes de». O Corpus do Português (Mark Davies e Michael Ferreira) apresenta apenas duas ocorrências de «em antes de», provenientes da mesma obra, Contos Gauchescos (1912), de Simões Lopes Neto (1865-1916), um escritor brasileiro do Rio Grande do Sul:

«E quando estávamos neste balanço ouvimos então a gritaria das mulheres, que tinham vindo de a pé, encontrando no caminho a mãe Tanásia. Em antes de chegarem, já os cuscos, ponteiros, tinham começado a acuar, por debaixo dos araçazeiros [...].»¹

«Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões.»

¹ Apesar de rejeitada pela norma, a expressão «de a pé» tem uso frequente no português brasileiro coloquial.

Pergunta:

No Brasil a expressão «deitar e rolar» é usada com o significado de «fazer o que se quer, sem se importar com as consequências».

Gostaria de saber qual sua origem.

Resposta:

Não foi possível identificar os factos históricos que deram origem à expressão. No entanto, é aparente o seu valor metafórico, evocativo de qualquer corpo ou volume de grande peso e dimensão (por exemplo, como no bowling ou boliche) que, posto em movimento, derruba outros objetos na sua passagem.

Como subentrada do verbo deitar, o Dicionário Houaiss classifica esta expressão como regionalismo brasileiro que tem uso informal e ocorre nas seguintes aceções:

«d. e rolar Regionalismo: Brasil. Uso: informal. 1 agir segundo o comando dos desejos, sem levar em consideração qualquer limite. Ex.: embriagado, ele deitou e rolou naquele dia; 2 Derivação: por extensão de sentido, fazer tudo o que se quer, sem limites, em decorrência de uma superioridade, um domínio. Ex.: a polícia deitou e rolou quando invadiu a favela; 3 exercer o domínio sobre (outrem), em virtude de superioridade. Ex.: o time deitou e rolou em cima do adversário.»

A expressão ocorre na canção Vou Deitar e Rolar, interpretada por Elis Regina (1945-1982):

Pergunta:

Eu reparei que a maioria das línguas europeias usa n nas palavras que em português terminam em m, mesmo o francês, que também possui vogais nasais. Por que abandonamos o n, comum na Idade Média, em prol do m?

Resposta:

Na escrita do português antigo, no qual se usava o -n e o til – ~ – em posição final, a nasalidade em final de palavra – seja esta considerada vocálica ou consonântica – podia ser também representada por -m, como anota Edwin B. Williams em Do Latim ao Português (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, pág. 35):

«O uso do m final para indicar nasalação da vogal final apareceu talvez em monossílabos da prosa legal por imitação da ortografia latina, e.g. , com, quem, rem (arcaico), tam [...]. O abandono do n em favor do m ocorreu no curso do século XIII [...].»

Refira-se que o -m surgia frequentemente tanto em Portugal como na Galiza, como refere Clarinda de Azevedo Maia, em História do Galego-Português (Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986, págs. 306/307, n. 4):

«[...] [C]ontrariamente ao que pensavam alguns, a grafia -m em final de palavra não é um pormenor que diferencie os documentos da Galiza e de Portugal. [...] Este processo gráfico é [...] comum aos sistemas de escrita medievais de Portugal e da Galiza.»

A ortografia portuguesa acabou por fixar o -m como marca de nasalidade em final de palavra.