Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Os termos "ginecídio" ou "feminicídio", referindo-se à matança sistemática e compulsiva de mulheres por razões geralmente de ordem sociocultural, existem na língua portuguesa? Não sendo o caso, estariam bem formados e, consequentemente, passíveis de serem utilizados?

Resposta:

Numa consulta Google, encontram-se efetivamente em uso as palavras "ginecídio" e "feminicídio", ainda não atestadas nos dicionários*. A primeira é discutível, pois deveria ter antes a forma ginocídio, um híbrido greco-latino, que associa a «forma não canónica» gin(o)-1, do grego gunê, gunaikós, «mulher», ao elemento de composição -cídio, proveniente do latim -cidĭum, «ação de quem mata ou o seu resultado» (cf. gin(o)- e -cídio no Dicionário Houaiss). Observe-se que esta palavra evoca outra, genocídio, também um híbrido, por juntar o radical de origem grega geno- (de génos, eos-ous, «raça, tronco, família», cf. idem) ao referido elemento -cídio, de génese latina.

A forma mencionada em segundo lugar é etimologicamente homogénea quanto aos elementos que participam na sua formação; do ponto de vista tradicional prescritivo, considera-se mais correta2, visto incluir apenas radicais de origem latina: o radical femin- (do lat. femĭna, ae, «fêmea») e o já referido elemento -cídio (idem). A palavra feminicídio segue, portanto o modelo de muitos compostos morfológicos, formados exclusivamente por elementos de orig...

Pergunta:

Na frase «não existe amor em SP», o verbo é impessoal? Porque, se eu substituir o verbo existir pelo verbo haver, obtém-se a seguinte frase: «não há amor em SP», que é impessoal, pois o verbo haver está no sentido de existir. Então, eu posso deduzir que por isso a primeira frase do trecho da música do Criolo também é impessoal?

Resposta:

O verbo existir não é impessoal.

Substituindo amor por sentimentos, verifica-se que existir passa ao plural:

1) «Não existe amor em SP.»

2) «Não existem sentimentos em SP.»

O mesmo não acontece com haver:

3) «Não há amor em SP.»

4) «Não há sentimentos em SP.»

Por outras palavras, existir não é impessoal, visto concordar com expressões nominais como «amor» ou «sentimentos», que desempenham a função de sujeito (posposto) nas frases 1) e 2). Já haver é de facto um verbo impessoal: nas frases 3) e 4), não concorda com as expressões nominais «amor» e «sentimentos», antes as seleciona como objetos (ou complementos) diretos.

Pergunta:

Qual é o radical de dramalhão?

Será drama?

Resposta:

É dram-.

Poderia pensar-se que o radical do aumentativo dramalhão é drama, contudo, neste substantivo, a terminação -a é uma vogal temática que tem origem no grego antigo, língua em que existem substantivos masculinos com tema em -a (ex.: diploma, atos, «objeto duplo, tablete de papel dobrado em dois», pelo latim diploma, atis). Considerando que -alhão é um sufixo, a base de derivação é o radical dram-.

Dito isto, observe-se o sufixo -alhão é, na verdade, a sequência de dois: -alho (cf. cabeça - cabeçalho) e -ão. Mesmo assim, é notório que -alhão se comporta como um único sufixo – por exemplo, quando se analisam casos como o de espertalhão, cujo radical espert- (de esperto) é sufixado diretamente por -alhão, não se atestando a forma intermédia *"espertalho".

Pergunta:

Queria saber se os nomes seara, peral, pomar ou vinha são nomes coletivos. Também as palavras dezena, século, trimestre me suscitam a mesma dúvida: são nomes coletivos?

Obrigada pela ajuda.

Resposta:

Os substantivos seara, peral, pomar e vinha são nomes coletivos e, como tal, designam conjuntos de entidades do mesmo tipo ou espécie:

seara: «conjunto de plantas em espiga que pertencem a uma ou mais espécies de cereal»;

peral: «conjunto de pereiras»;

pomar: «conjunto de árvores de fruto»;

vinha: «conjunto de videiras».

Sobre os outros substantivos:

dezena: trata-se de um numeral coletivo (cf. Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 934/935; «coletivo numeral» no Dicionário Houaiss, s. v. coletivo);

século e trimestre: não são coletivos; são interpretados não como conjuntos, mas como intervalos de tempo, períodos.

Pergunta:

Na resposta sobre o tema suprarreferido, afirmou-se:

«c) mas, se articularmos duas orações, sem que estas se encaixem numa frase matriz para aí desempenharem a função de sujeito (p. ex., «Eles cometeram pecados e têm vícios»), não falamos em sujeito composto, porque cada oração tem o seu próprio sujeito, eventualmente indeterminados, apesar de correferentes, como ocorre em «pensa-se e diz-se», cujos sujeitos são indeterminados.»

A frase comentada é a seguinte: «Pensa-se e diz-se que é possível que haja vida noutros planetas.»

Penso que não haja aí sujeitos indeterminados, mas sujeitos oracionais representados pela frase «que é possível», sendo «que haja vida noutros planetas» também sujeito oracional de «é possível».

Trata-se, em meu entender, de um interessante encadeamento de orações com vínculo sintático com «pensa-se» e «diz-se».

Peço ao professor Carlos Rocha a fineza de comentar.

Obrigado.

Resposta:

Agradeço o comentário do consulente.

A resposta foi reformulada de modo a referir a análise mais tradicional de se como partícula apassivadora. Permito-me, no entanto, lembrar que é também legítimo considerar que o pronome se pode ocorrer como marcador de sujeito indeterminado mesmo com verbos transitivos. Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, p. 178) refere-se a esta possibilidade:

«[...] o se como índice de indeterminação de sujeito – primitivamente exclusivo em combinações com verbos não acompanhados de objeto direto – estendeu seu papel aos transitivos diretos (onde a interpretação passiva passa a ter uma interpretação pessoal: Vendem-se casas = "alguém tem casas para vender") e de ligação (É-se feliz). A passagem deste emprego da passiva à indeterminação levou o falante a não mais fazer concordância, pois o que era sujeito passou a ser entendido como objeto direto, função que não leva a exigir o acordo do verbo:

Vendem-se casas (= "casas são vendidas") -> Vendem-se casas (= "alguém tem casas para vender") -> Vende-se casas.

"Vende-se casas" e "frita-se ovos" são frases de emprego ainda antiliterário, apesar da já multiplicidade de eventos. A genuína linguagem literária requer vendem-se, fritam-se. Mas ambas as sintaxes estão corretas, e a primeira não é absolutamente, como fica demonstrado, modificação da segunda. São apenas dois estágios diferentes de evolução. Fica também provado o falso testemunho que levantaram à sintaxe francesa, que em verdade nenhuma influência neste particular exerceu sobre nós..." [Martinz de Aguiar, Notas e Estudos de Português, 2.ª ed. Rio de Jane...