Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Os carpinteiros usam muito a palavra "prexas" associada a "ripas" (madeira para o telhado). Essa palavra existe?

Resposta:

Trata-se de precha, variante minhota (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa) de percha, que significa, segundo o Dicionário Houaiss:

«1 vara de madeira, de três a quatro metros de comprimento, us. por ginastas; 2 (a1858)  pau em que são colocados os panos que foram apisoados para serem cardados; 3 (1597) Rubrica: termo de marinha. Diacronismo: antigo. em veleiros com beque, peça que ia da face exterior da proa até ao extremo posterior do beque; 4 Rubrica: termo de marinha.
moldura que serve de ornamento curvo da proa do navio; 5 Rubrica: termo de marinha. design. genérica para qualquer peça de madeira utilizada como viga.»

Esta palavra tem origem no francês perche, com origem no latim pertĭca, formas a que se atribui o mesmo sentido; em português, está atestada como percha no século XV e precha, no século XVI (idem).

Pergunta:

Qual o emprego correto de «a tempo» e «em tempo»?

Gostaria também de saber mais sobre o mesmos se possível. Já revirei páginas a fio na Internet e nada encontro. Poderiam me ajudar?

Grata!

Resposta:

Não se pode afirmar que haja uma diferença semântica clara entre «a tempo» e «em tempo».

O Dicionário Houaiss distingue semanticamente a duas locuções adverbiais:

a tempo: «no momento oportuno; ex.: "viajou a tempo"»; «dentro do prazo; ex.: "apresentou os documentos a tempo"».

em tempo: «expondo-se a; correndo o perigo de; ex.: "atravessou com o sinal fechado, em tempo de ser atropelado"».

Esta clara distinção não é confirmada pelo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa:

a tempo: «compassadamente»; «no momento apropriado, oportuno; sem atraso: tinha sempre tudo pronto a tempo»

em tempo: «oportunamente».

E Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Uso do Português, regista «a tempo» como sinónimo de «em tempo»:

«A expressão adverbial a tempo equivale a em tempo, isto é, o a é uma simples preposição: Betinha ia responder mas parou A TEMPO [...]

Pode seguir-se uma expressão iniciada pela preposição de: Voltei rapidamente e agarrei-o A TEMPO de impedir que fosse laçado novamente pelos homens encolerizados [...].»

Em suma, as locuções «a tempo» e «em tempo» nem sempre são sinónimas, mas confundem-se no uso – sem que haja condenação tradicional da norma – quando significam «sem atraso».

Pergunta:

A expressão correcta é «russo de mau pêlo», ou «ruço de mau pêlo»?

Resposta:

No dito tradicional português deve ocorrer a palavra ruço:

«Ruço de mau pelo, quer casar, não tem cabelo.»

Neste contexto, ruço tem o significado genérico de «pessoa com cabelo loiro ou castanho-claro» (Dicionário Houaiss).

José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, põe por hipótese derivar esta palavra do latim rōscĭdu-, "orvalhado" (é a proposta de etimologia que o Dicionário Houaiss reproduz). Esta etimologia permite afirmar que a palavra portuguesa deve escrever-se com -ç-, não se tratando, portanto, de outra mais conhecida – russo –, cuja etimologia é totalmente diferente, do francês russe ou do latim russi, do russo rús, este talvez de uma língua germânica escandinava ou do finlandês  (Dicionário Houaiss)1. No entanto, há um argumento de maior peso para se considerar que é ruço, e não russo, a forma certa na expressão tradicional portuguesa: no galego, na ortografia reconhecida oficialmente, escreve-se ruzo, que significa «de cor parda clara, cana ou tirando a cana» (em galego, cana é o mesmo que grisalho, «que tem cabelos brancos»); sucede que, por razões históricas, o -z- galego corresponde geralmente ao -ç- do português (caza é o mesmo que caça).

Estão, portanto, errados os dicionários de provérbios que registam o dito em referência com a forma russo, que deveria ser substituída pela sua homófona ruço.

Pergunta:

Os termos "ginecídio" ou "feminicídio", referindo-se à matança sistemática e compulsiva de mulheres por razões geralmente de ordem sociocultural, existem na língua portuguesa? Não sendo o caso, estariam bem formados e, consequentemente, passíveis de serem utilizados?

Resposta:

Numa consulta Google, encontram-se efetivamente em uso as palavras "ginecídio" e "feminicídio", ainda não atestadas nos dicionários*. A primeira é discutível, pois deveria ter antes a forma ginocídio, um híbrido greco-latino, que associa a «forma não canónica» gin(o)-1, do grego gunê, gunaikós, «mulher», ao elemento de composição -cídio, proveniente do latim -cidĭum, «ação de quem mata ou o seu resultado» (cf. gin(o)- e -cídio no Dicionário Houaiss). Observe-se que esta palavra evoca outra, genocídio, também um híbrido, por juntar o radical de origem grega geno- (de génos, eos-ous, «raça, tronco, família», cf. idem) ao referido elemento -cídio, de génese latina.

A forma mencionada em segundo lugar é etimologicamente homogénea quanto aos elementos que participam na sua formação; do ponto de vista tradicional prescritivo, considera-se mais correta2, visto incluir apenas radicais de origem latina: o radical femin- (do lat. femĭna, ae, «fêmea») e o já referido elemento -cídio (idem). A palavra feminicídio segue, portanto o modelo de muitos compostos morfológicos, formados exclusivamente por elementos de orig...

Pergunta:

Na frase «não existe amor em SP», o verbo é impessoal? Porque, se eu substituir o verbo existir pelo verbo haver, obtém-se a seguinte frase: «não há amor em SP», que é impessoal, pois o verbo haver está no sentido de existir. Então, eu posso deduzir que por isso a primeira frase do trecho da música do Criolo também é impessoal?

Resposta:

O verbo existir não é impessoal.

Substituindo amor por sentimentos, verifica-se que existir passa ao plural:

1) «Não existe amor em SP.»

2) «Não existem sentimentos em SP.»

O mesmo não acontece com haver:

3) «Não há amor em SP.»

4) «Não há sentimentos em SP.»

Por outras palavras, existir não é impessoal, visto concordar com expressões nominais como «amor» ou «sentimentos», que desempenham a função de sujeito (posposto) nas frases 1) e 2). Já haver é de facto um verbo impessoal: nas frases 3) e 4), não concorda com as expressões nominais «amor» e «sentimentos», antes as seleciona como objetos (ou complementos) diretos.