Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O esquema rimático abab corresponde à rima cruzada? Será que se pode considerar rima cruzada quando temos o esquema rimático abac?

Resposta:

Pode considerar-se que um esquema como abac é representativo da rima cruzada. Amorim de Carvalho, no seu Tratado de Versificação (Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1981, p. 84), considera que a rima é «cruzada, quando alterna com verso sem rima ou de rima diferente»; exemplo (idem):

«Porém quando mais te amo,

ó cruz do meu Senhor,

é se te encontro à tarde,

antes do Sol se pôr;1»

Alexandre Herculano

Neste exemplo, o esquema rimático é abcb, mas, à luz do critério enunciado por Amorim de Carvalho, é também legítimo aceitar abac como esquema de rima cruzada, uma vez que a rima alterna com versos sem rima (b e c).

1 A norma estipula que a preposição não se contraia com o artigo que faça parte do sujeito de uma oração de infinitivo. Observe-se, contudo, que nem sempre isso acontece nos autores clássicos.

Pergunta:

Existe o aportuguesamento de kosher? [Trata-se de] termo referente à produção e preparação de alimentos segundo as leis judaicas.

Resposta:

Não tenho conhecimento de existir aportuguesamento estável de kosher, forma anglicizada de uma palavra iídiche relativa ao «que está de acordo com a lei judaica (sobretudo no âmbito alimentar)» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; ver também Dicionário Houaiss).1 Observo também que, como sinónimo de kosher, o Dicionário Houaiss regista kacher2, mas a presença do k torna esta grafia insatisfatória, dadas as restrições ao uso dessa letra na ortografia do português3. E ainda que supuséssemos como adequadas as adaptações gráficas "cóxer" ou "cócher"4, é kosher, em itálico, a forma que os dicionários acolhem.

As outras línguas românicas, pela sua afinidade com o português, poderiam dar algumas sugestões, mas, em relação a kosher, também elas se pautam por uma certa indecisão e alguma diversidade de resultados. Em espanhol, apesar da maior adequação de cócher, recomenda-se kósher por ser grafia mais usada (cf. comentário do Fundéu – Fundación del Español Urgente). Em galego, há quem escreva kóxer, mas nem esta nem outra formas aparecem sancionadas pelo dicionário da Real Academia Galega. Em catalão, atesta-se caixer (Diccionari de la Llingua Catalana do Institut d´Estudis Catalans), mais de acordo com a forma histórica hebraica (ver nota 1). Finalmente, em francês, verifica-se uma grande variação: kasher, casher, kacher, cacher, cawcher, câchère (informação da Wikipédia em francês, s. v.

Pergunta:

Estou a concluir o meu doutoramento em Turismo, e a bibliografia mais relevante neste domínio é na língua inglesa. A minha tese é sobre o comportamento espacial "intradestino" (que traduzi assim do vocábulo inglês intra-destination) do turista urbano na sua visita multiatração (que traduzi de multi-attraction, termo inglês recente, utilizado pela primeira vez no campo científico numa pesquisa de 2008). Assim, a minha questão é: "intradestino" e "multiatração" são aceitáveis, ou estrangeirismos inaceitáveis? Os dicionários já registam termos como multiuso ou intranet. Claro que posso dizer, em vez de «visita multiatração», «visita dirigida a múltiplas atrações», mas quando quero expressar que o comportamento espacial do turista urbano tem uma dimensão "multiatração", como fazê-lo? Não gosto de usar estrangeirismos desnecessários, mas quando se trata de vocabulário científico, em que o rigor concetual é muito exigente, a nossa língua pode/deve servir-nos ou impor-nos limitações? Pode ter-se uma perspectiva mais evolutiva da língua, ou é um erro crasso utilizar aqueles vocábulos que repito centenas de vezes ao longo da minha tese?

Muito obrigada.

Resposta:

Nas áreas de especialidade, há grande margem para o emprego de neologismos que os dicionários gerais não registam. Sendo assim, desde que a consulente fundamente as suas opções terminológicas, não nos parece mal que adote os termos que refere, uma vez que eles parecem concetualmente adequados. Mesmo que as formas intradestino e multiatração sejam decalques de termos ingleses, e mesmo que multiatração seja usado como adjetivo (à semelhança de multiúso, como em «pavilhão multiúso»), se não houver tradição terminológica alternativa na sua área de especialidade, a solução mais acessível será mesmo a de usar essas palavras.

Pergunta:

Gostaria de saber o termo que se deverá utilizar para designar aquele contra quem se reclama.

Ou seja, se eu sou o reclamante, sobre quem se reclama será o "reclamado"?

Resposta:

Efetivamente, verifica-se o uso de reclamado em referência à entidade que presta o serviço ou o bem ou serviço que são objeto de reclamação:

(i) «[...] julga-se parcialmente procedente a reclamação tendo em conta as disposições legais referidas, condena-se o banco reclamado a restituir ao reclamante a quantia [...]» (consultar aqui).

(ii) «Apoiar o consumidor e realizar a mediação dos conflitos de consumo entre os consumidores e entidades reclamadas, procedendo a denúncias junto das entidades da administração pública competentes» (página da Deco).

Outros exemplos:

«instituição reclamada», «entidade reclamada» (páginas do sítio do Banco de Portugal).

Assinale-se que se pode usar reclamado também como substantivo: «a reclamada» [na fonte citada em (i)].

Pergunta:

Notei que há duas possíveis escritas para sorame (atestado no brasileiro Aulete) e zorame (atestado no português Priberam), que parecem ter o mesmo significado, sendo ambas atestadas pelo vocabulário oficial brasileiro.

Gostaria de saber se são duas versões da mesma palavra, se uma é decorrente de outra e se há alguma que seja mais adequada para determinadas situações (como um texto atual ou tradução de um texto antigo, por exemplo).

Muitíssimo grato pelas inestimáveis contribuições!

Resposta:

A palavra em questão, que significa «manto feminino com capuz, de estilo mouro» ou, simplesmente, «capa mourisca», tem as variantes zorame, cerome e cerame. Estas três formas encontram-se quer em dicionários do Brasil quer nos de Portugal, incluindo os vocabulários ortográficos. Também se regista sorame, mas apenas em fontes brasileiras (Aulete e Vocabulário Ortográfico, da Academia Brasileira de Letras).

As formas cerame e cerome parecem ter maior antiguidade que zorame e sorame. Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra tem origem «[n]o ár. sulhām, `manto com capucho´, mas o voc. não deve ter entrado no port. diretamente do ár[abe]».