Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estou a concluir o meu doutoramento em Turismo, e a bibliografia mais relevante neste domínio é na língua inglesa. A minha tese é sobre o comportamento espacial "intradestino" (que traduzi assim do vocábulo inglês intra-destination) do turista urbano na sua visita multiatração (que traduzi de multi-attraction, termo inglês recente, utilizado pela primeira vez no campo científico numa pesquisa de 2008). Assim, a minha questão é: "intradestino" e "multiatração" são aceitáveis, ou estrangeirismos inaceitáveis? Os dicionários já registam termos como multiuso ou intranet. Claro que posso dizer, em vez de «visita multiatração», «visita dirigida a múltiplas atrações», mas quando quero expressar que o comportamento espacial do turista urbano tem uma dimensão "multiatração", como fazê-lo? Não gosto de usar estrangeirismos desnecessários, mas quando se trata de vocabulário científico, em que o rigor concetual é muito exigente, a nossa língua pode/deve servir-nos ou impor-nos limitações? Pode ter-se uma perspectiva mais evolutiva da língua, ou é um erro crasso utilizar aqueles vocábulos que repito centenas de vezes ao longo da minha tese?

Muito obrigada.

Resposta:

Nas áreas de especialidade, há grande margem para o emprego de neologismos que os dicionários gerais não registam. Sendo assim, desde que a consulente fundamente as suas opções terminológicas, não nos parece mal que adote os termos que refere, uma vez que eles parecem concetualmente adequados. Mesmo que as formas intradestino e multiatração sejam decalques de termos ingleses, e mesmo que multiatração seja usado como adjetivo (à semelhança de multiúso, como em «pavilhão multiúso»), se não houver tradição terminológica alternativa na sua área de especialidade, a solução mais acessível será mesmo a de usar essas palavras.

Pergunta:

Gostaria de saber o termo que se deverá utilizar para designar aquele contra quem se reclama.

Ou seja, se eu sou o reclamante, sobre quem se reclama será o "reclamado"?

Resposta:

Efetivamente, verifica-se o uso de reclamado em referência à entidade que presta o serviço ou o bem ou serviço que são objeto de reclamação:

(i) «[...] julga-se parcialmente procedente a reclamação tendo em conta as disposições legais referidas, condena-se o banco reclamado a restituir ao reclamante a quantia [...]» (consultar aqui).

(ii) «Apoiar o consumidor e realizar a mediação dos conflitos de consumo entre os consumidores e entidades reclamadas, procedendo a denúncias junto das entidades da administração pública competentes» (página da Deco).

Outros exemplos:

«instituição reclamada», «entidade reclamada» (páginas do sítio do Banco de Portugal).

Assinale-se que se pode usar reclamado também como substantivo: «a reclamada» [na fonte citada em (i)].

Pergunta:

Notei que há duas possíveis escritas para sorame (atestado no brasileiro Aulete) e zorame (atestado no português Priberam), que parecem ter o mesmo significado, sendo ambas atestadas pelo vocabulário oficial brasileiro.

Gostaria de saber se são duas versões da mesma palavra, se uma é decorrente de outra e se há alguma que seja mais adequada para determinadas situações (como um texto atual ou tradução de um texto antigo, por exemplo).

Muitíssimo grato pelas inestimáveis contribuições!

Resposta:

A palavra em questão, que significa «manto feminino com capuz, de estilo mouro» ou, simplesmente, «capa mourisca», tem as variantes zorame, cerome e cerame. Estas três formas encontram-se quer em dicionários do Brasil quer nos de Portugal, incluindo os vocabulários ortográficos. Também se regista sorame, mas apenas em fontes brasileiras (Aulete e Vocabulário Ortográfico, da Academia Brasileira de Letras).

As formas cerame e cerome parecem ter maior antiguidade que zorame e sorame. Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra tem origem «[n]o ár. sulhām, `manto com capucho´, mas o voc. não deve ter entrado no port. diretamente do ár[abe]».

Pergunta:

Quando era miúdo, nunca brinquei à "apanhada", aliás nem conheceria o sentido dessa palavra. Aqui (no Porto), brincava-se às "caçadinhas". Estranhamente, esta palavra não vem prevista nos dicionários. Não se considera como fazendo parte do corpo da língua portuguesa?

Resposta:

Também nós não encontramos dicionarizada a expressão «brincar às caçadinhas», mas não é o registo em dicionário que define a pertença à língua portuguesa (no caso, à variedade de Portugal). A expressão tem tido ocorrências em páginas da Internet, e, além disso, a questão que nos enviou é, afinal, uma maneira de atestar o seu uso, perfeitamente legítimo. Cabe-nos a nós, portanto, agradecer-lhe o cuidado em chamar-nos a atenção para esta locução sinónima de «brincar/jogar à apanhada».

Acrescente-se que, no mundo de língua portuguesa, este jogo ou brincadeira é conhecido por outros nomes. Por exemplo, o Dicionário Houaiss regista, relativamente ao português do Brasil, os seguintes termos: pique, angapanga, bota, cerca-lourenço, pega-pega, pegador, picula.

Pergunta:

Qual é a etimologia do substantivo sucesso?

Resposta:

O substantivo sucesso tem origem, por via culta, no «lat. successus, us, "entrada, abertura; aproximação, chegada, vinda; bom resultado, bom êxito, bom sucesso" (Dicionário Houaiss). Relaciona-se também por via do latim com suceder, que é um verbo também proveniente do latim «lat. succedo, is, essi, essum, ere, "ir debaixo; entrar debaixo; entrar em um porto; submeter; aproximar-se; subir; colocar-se diante de; vir depois, vir em seguida, tomar o lugar de; alternar, revezar; suceder a; herdar; acontecer, sair-se (bem ou mal); ter um resultado", comp[osto] de sub- e cedĕre, 'ir, vir; ceder o lugar a'» (idem).