Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«O primo Leandro, prestes a dar início à sua atribuição póstuma, deitou um olhar escrupuloso no relógio da parede e anotou a hora.»

Na frase acima, está correta a regência do verbo deitar? Poder-se-ia empregar «ao relógio»?

Obrigado.

Resposta:

As duas regências estão corretas, porque o verbo deitar, que na expressão em causa tem valor metafórico, pode interpretar-se quer como «estender, dispor (em)» quer como «atirar (a)»:

(1) «deitou um olhar no relógio» = «pôs os olhos no relógio»

(2) «deitou um olhar ao relógio» = «levou os olhos ao relógio»

As paráfrases em 1 e 2 são elas também metafóricas, mas permitem salientar o pequeno contraste semântico entre as preposições.

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra relé (usada no contexto da electricidade) é feminina ou masculina.

Coloco a questão, pois nos dicionários online encontrei informações contraditórias.

Agradeço desde já a atenção dispensada.

Resposta:

Relé, com o significado de «electroíman que trabalha com corrente fraca e funciona como interruptor intercalado num circuito local e comandado à distância» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), é um substantivo do género masculino (cf. idem; ver também Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, Dicionário Houaiss e Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado). Trata-se do aportuguesamento do francês relais, ao qual, historicamente, se atribuem vários significados, conforme se anota no Dicionário Houaiss: «[do] fr[ancês] relais (sXIII) "cães deixados de reserva para substituir os que atuam em uma caçada"; "cavalos deixados no percurso de viajantes e caçadores para substituir os que vêm cansados"; "o lugar onde estas mudas ocorrem"; "equipe de substituição em uma corrida"; (1877) '"aparelho em um circuito elétrico", de relayer "render, revezar, substituir" com infl[uência] do fr[ancês] ant[igo] relais "demora"».

As fontes consultadas também registam relé no género feminino, mas trata-se de uma variante de ralé, «gente considerada de baixa condição moral, cultural e social» (Dicionário Priberam). Sobre a origem desta palavra pouco ou nada se sabe: «orig[em] obsc[ura].; segundo Corominas, prov[avelmente do] fr[ancês] ant[igo] ralée "ida", com a ac[e]p[ção] de "ato de capturar uma presa", der[ivado] de aler e "raler "ir", aplicados ao ato da ave de rapina lançar-se sobre sua vítima [...].» (idem).

Pergunta:

Gostaria de que esclarecessem uma questão sobre emprego do tempo verbal com que eu e minhas colegas da faculdade de Psicologia sempre ficamos em dúvida .

Algumas colegas defendem que, na introdução de um trabalho acadêmico, se deveria, obrigatoriamente, usar o verbo tão-somente no futuro do presente. Argumentam que, na introdução, se relataria, em breves pinceladas, o que, de forma mais detalhada, se falará futuramente no decorrer do texto de que faz parte a referida introdução. Por exemplo: «O presente trabalho buscará avaliar a capacidade do indivíduo em relação a...»

Pois bem. Se o próprio Camões, na “introdução” de Os Lusíadas (Canto I), escreve «Cantando espalharei por toda parte...», não sou eu certamente que me arriscaria a dizer que elas estão erradas quanto a usar o verbo no futuro.

Mas será que usar o verbo no passado também não estaria correto? Por exemplo: «O presente trabalho buscou avaliar a capacidade do indivíduo em relação a...» Ora, seja na introdução ou não, estamos relatando um trabalho que, na verdade, já foi feito, no passado, em um momento anterior ao texto que estamos redigindo, para formalizar esse trabalho realizado.

Será que não é só uma questão de perspectiva, de decidir em que momento do tempo poremos o enunciador em relação ao fato que ele enuncia e de decidir qual fato afinal importa destacar? Devemos destacar o trabalho realizado, que se formaliza com o texto, ou destacar o próprio texto cujo curso segue após sua introdução?! Fico imaginando também se, com o verbo no passado, o texto ficaria mais discreto, como talvez conviesse a um texto científico. Não se trata de poesia, vale lembrar. Aliás, será que o verbo no passado produziria um efeito de maior certeza sobre o que foi feito, ao passo que o verbo no futuro não, pelo menos no caso em tela?

...

Resposta:

A questão levantada não é propriamente gramatical, e, sobre ela, não parece haver regras estritas. Por exemplo, há também quem opte por usar o presente do indicativo na introdução do trabalho, uma vez que este se encontra disponível para leitura no momento dessa mesma apresentação. Faço, no entanto, uma observação: se se empregar os tempos do sistema do passado, dar-se-á a impressão de que se relata a pesquisa feita, em vez de se apresentar o trabalho. Por isso, recomendo o futuro do presente ou o presente do indicativo como tempos verbais mais adequados, porque, nessa parte introdutória, o trabalho é contemporâneo da enunciação ou a ela subsequente.

Pergunta:

Como se designa um praticante de padel?

Resposta:

Usa-se a forma padelista, que a Federação Portuguesa de Padel não parece adotar. Seja como for, padelista é uma forma adequada, derivada regularmente de padel, por adjunção do sufixo -ista (cf. maratona > maratonista).

Uma observação sobre a forma padel, que significa «desporto de raquete, jogado a pares e utilizando raquetes e bolas próprias», «[cujo] campo é retangular, totalmente fechado, tem 10 metros de largura por 20 de comprimento e uma rede no meio»: em registos audiovisuais, noto que o nome desta modalidade desportiva é pronunciado como "pádel". Atendendo a esta articulação, e porque o nome tem origem no inglês paddle, que tem acento tónico na primeira sílaba (transcrição fonética: [’pad(ə)l]), parece-me mais adequada a grafia pádel – de resto, igual à que é usada em espanhol –, porque é a que está em correspondência exata com essa pronúncia.

Pergunta:

«A terça parte», correspondendo a «um terço», pode considerar-se um quantificador numeral fracionário?

Resposta:

No contexto dos ensinos básico e secundário de Portugal, não há termo especial para  expressões como «a terça parte». No entanto, os linguistas reconhecem a sua relação com os quantificadores e os fracionários. Por exemplo, na Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian:

«Expressões como a maioria, a maior parte, uma minoria, etc. podem ser consideradas numerais fracionários. Todavia, não denotam uma quantidade exata (nem em termos absolutos nem em termos relativos). Distinguem-se de outras expressões indefinidas como alguns ou parte de por terem implícito um numeral, ´meio` ou ´metade`. As duas primeiras significam ´mais de metade`, e a terceira, ´menos de metade´. Essa pressuposição de um valor numérico específico não se verifica no caso de alguns ou parte de

Parece-nos, portanto, possível classificar «a terça parte» como quantificador numeral fracionário. Mas voltamos a sublinhar que esta classificação não faz parte da terminologia usada em Portugal nos ensinos básico e secundário.