Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Já li as respostas à questão da subclasse do verbo parecer e concordo com os argumentos, mas no livro Cão como nós de Manuel Alegre surge a seguinte frase: «... o canil que lhe parecia uma prisão.» Podemos considerar que nesta frase o verbo é transitivo? Se não podemos, que função sintáctica desempenha o pronome lhe?

Agradeço desde já a atenção dispensada ao assunto.

Muito obrigado.

Resposta:

O verbo parecer é um verbo copulativo e, como tal, não é considerado um verbo transitivo – pelo menos de acordo com o Dicionário Terminológico (para apoio do ensino básico básico e secundário em Portugal). Quando o verbo em apreço ocorre com o pronome lhe, mantém-se a sua classificação de verbo copulativo.

A isso mesmo faz referência a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 1313), quando o descreve como verbo copulativo:

«Parecer, como verbo de cópula, tem um sentido muito próximo, se não idêntico ao do seu homólogo pleno, denotando crença numa situação construída com base numa evidência percetual, ou simplesmente obtida a partir de terceiros; essa crença, no entanto, não é forte; ou seja, o uso de parecer veicula um certo grau de incerteza na atribuição da propriedade ou do estado à entidade repreentada pelo sujeito. Este verbo pode combinar-se com um pronome dativo, que representa o experienciador da crença (cf. a Maria parece-lhe doente); neste caso, o falante assere [afirma] que um determinado indivíduo, designado pelo pronome, atribui de forma não categórica uma propriedade ou um estado do sujeito (a Maria estar doente, na frase dada como exemplo). Em alternativa, o verbo pode ser usado sem complemento indireto (cf. a Maria parece doente), significando, nesse caso, que o experienciador da crença é o próprio falante.»

Em suma, apesar de parecer poder ser usado com um complemento indireto, este facto não faz com que o verbo seja classificado como transitivo. Trata-se, portanto, de um verbo copulativo que tem um complemento indireto de ocorrência não obrigatória.

Pergunta:

Vai para 10 anos, fiz-vos uma pergunta no website para a qual, embora vos esteja grato por ma tentarem dar, ainda não obtive resposta satisfatória. Ponho-a outra vez, pedindo que me seja explicado, s.f.f., qual o raciocínio por detrás de [feminismo, e não "femininismo",  ser forma correta] , mas "masculinismo" ser aceitável (?!).

Resposta:

1- O substantivo feminismo não se formou regularmente. É termo que foi adaptado do francês, de acordo o Dicionário Houaiss: «[do] fr. féminisme (1837) "doutrina que visa à extensão dos papéis femininos"» (trata-se da mesma etimologia proposta por Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa). Féminisme  tem formação erudita, segundo o Trésor de la Langue Française (CNRS): «Dér. du rad. du lat. femina (femme*); suff. -isme*.»*

*Tradução livre: «derivado do radical do latim femina (mulher); sufixo -isme)

2- Em português, seria possível a forma regular "femininismo", com duas sílabas praticamente iguais repetidas, em alternativa a feminismo, mas quis a história da língua que este, e não aquele, se fixasse no uso. Não se atesta relação histórica direta entre "femininismo" e feminismo: a queda de uma dessas sílabas (haplologia)* poderia explicar feminismo, mas não é obrigatória; basta lembrar que se diz corretamente competitividade, e não se aceita  "competividade" (apesar de ser palavra usada).

*O termo haplologia é um conceito descritivo e não normativo.

3- Como se assinala na resposta em causa, apenas ...

Pergunta:

Encontrei este pressuposto verbo "entrevir" numa pesquisa no vosso site relativamente a interveio. Efectuei então uma pesquisa sobre este pressuposto verbo "entrevir" e não existe! Ou será que existe?

Obrigado.

Resposta:

O verbo entrevir existe, tem registo dicionarístico, mas no português contemporâneo tem baixa frequência, como observa o Dicionário Houaiss, que o descreve como variante popular do semicultismo intervir, esta, sim, forma generalizada ao uso corrente. Apesar disso, encontra-se em dicionários brasileiros como o Dicionário Houaiss e o Dicionário Michaelis. E também tem entrada em obras produzidas em Portugal nos séculos XIX e XX, por exemplo, como sinónimo de intervir, no dicionário de Domingos Vieira (1872) e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado.

Pergunta:

Consultando as regras de concordância, eu me deparei com a possibilidade de, em algumas construções frasais, duas regras diferentes concorrerem.

Por exemplo, existe (1) a regra de concordância quando os núcleos do sujeito são formados por verbos no infinitivo e (2) a regra de concordância quando os núcleos do sujeito composto são ligados por ou. Exemplo: «Escovar os dentes com a torneira aberta ou tomar banho demorado GASTA(M) muita água.»

Afinal, nessa frase, (1) segue-se a regra de concordância do sujeito com verbos no infinitivo, a saber: o verbo deve ficar obrigatoriamente na 3.ª pessoa do singular (gasta), ou (2) segue-se a regra de concordância dos núcleos do sujeito composto ligados pela conjunção ou com valor aditivo, o que levaria o verbo gastar ao plural (gastam)? Em outras palavras, qual das duas regras devemos seguir e qual frase está certa: 1) «Escovar os dentes com a torneira aberta ou tomar banho demorado GASTA muita água», ou 2) «Escovar os dentes com a torneira aberta ou tomar banho demorado GASTAM muita água»?

Resposta:

A resposta que procura – exposta em termos não muito categóricos –, encontra-a na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pp. 506/507), de Celso Cunha e L. F. Lindley Cintra:

«Quando os sujeitos são dois ou mais infinitivos, o verbo fica no singular:

Olhar e ver era para mim um recurso de defesa. [José Lins do Rego (...)]

Fazer e escrever é a mesma coisa. [João de Araújo Correia (...)]

Vê-lo e amá-lo foi obra de um minuto. [Raquel de Queirós (...)]

Mas o verbo pode ir para o plural quando os infinitivos exprimem ideias nitidamente contrárias:

Em sua vida, à porfia,

Se alternam rir e chorar. [Alberto de Oliveira (...)].»

Observe-se, porém, que no caso em discussão a coordenação dos infinitivos é feita por meio da conjunção disjuntiva ou, e não com a conjunção copulativa e. Com efeito, a coordenação de sujeitos por meio de ou torna ainda menos forçosa a concordância no plural, embora não a exclua (ver Cunha e Cintra, op.cit, pág. 508/509 e Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, Editora Lucerna, 2002, pág. 557).

Sendo assim, maior margem existe para aceitar e até recomendar a concordância no singular com um sujeito constituído por dois infinitivos coordenados por ou:

(1) «Escovar os dentes com a torneira aberta ou tomar banho demorado gasta muita água.»

Pergunta:

A questão que venho aqui colocar é relativamente ao artigo definido. Sempre que desejo referir um livro, fico com dúvidas em relação ao emprego do artigo, se devo usá-lo ou não. Antes de vos escrever, deambulei pelo vosso site à procura de resposta e até acho que a encontrei. Porém, não sabendo se a regra se poderá aplicar à minha incerteza, decido, mesmo assim, colocá-la.

Em 2008 foi questionado o seguinte: «A respeito da capital de Moçambique, diz-se "o Maputo", ou "Maputo", sem artigo?»

Como resposta, a sra. Maria Regina Costa explicou: «Quando se designa o rio, utiliza-se o artigo, pois os nomes dos rios são precedidos de artigo: «o rio Maputo», «o Maputo». Quando se designa a cidade, a regra geral é a da omissão do artigo.»

Pois bem, esta regra aplica-se quando refiro algum livro quando posso usar simplesmente o título como resposta?

Exemplo:

— Ontem acabei de ler um livro.

— Que livro leste?

A resposta deverá ser: «li "A Casa Negra"» ou «li o/a "A Casa Negra Negra"»? Também fico com dúvidas de como utilizar o artigo definido, porque o próprio título já o contém — "A" — e é feminino. Mas, e no caso de o título se encontrar no masculino, «O Homem Que Perseguia o Tempo», eu deveria responder: «ontem li o "O Homem Que Perseguia o Tempo"», ou devo omitir o artigo "O", uma vez que o próprio título já o contém?

Grato pela vossa atenção.

Resposta:

Apenas se usa o artigo que é inerente ao título:

(1) Li A Casa Negra/O Homem Que Perseguia o Tempo.

Quando se pretende usar uma contração (da, no, pela), Celso Cunha e Lindley Cintra observam o seguinte (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 210; mantém-se a ortografia original):

«Quando a preposição antecede o artigo definido que faz parte do título de obras (títulos, revistas, jornais, contos, poemas, etc.) não há uma prática uniforme. Na língua escrita, porém, deve-se neste caso:

a) ou evitar a contracção, pelo modelo:

Camões é o autor de Os Lusíadas.

A notícia saiu em O Globo.

b) ou indicar pelo apóstrofo a supressão da vogal da preposição:

Camões é o autor d´Os Lusíadas.

A notícia saiu n´O Globo.

Tenha-se presente que as grafias "dos Lusíadas" e "no Globo" – talvez as mais frequentes – deturpam o título do poema e do jornal em causa.»