Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a origem da palavra piroso?

Resposta:

Não tenho acesso a fontes que se refiram à etimologia do adjetivo («roupa pirosa») e substantivo («um piroso») em questão. O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa classifica piroso como um derivado sufixal de pires e nada mais. No entanto, na Internet, encontro a seguinte proposta feita em comentário (mantenho a ortografia original):

«E o ser "piroso", ouvi hoje de manhã na rádio, tem que ver com esta história:

Por volta dos anos 50, terá surgido em Lisboa uma loja de confecções que, a dado momento, passou a ser comummente conhecida por disponibilizar roupas muito pouco reconhecidas na sua beleza (talvez fora de moda, talvez ridículas, talvez meio bregas, não apanhei bem...?!). Essa casa tinha por nome o apelido do seu proprietário: "Pires".
Vai daí que passou-se a dizer, quando se via alguém menos bem vestido: – "Estás muito [à] Pires, hoje"; ou (essa a que pegou): – "Que coisa pirosa!/que piroso!"»  (blogue Eucerejinha).

Infelizmente, não vejo esta narrativa confirmada noutras fontes, pelo que, por enquanto, a apresento como mera hipótese.

Pergunta:

Qual é a designação correcta do tipo de energia renovável que se extrai da retenção de água nas barragens? Hídrica, ou hidráulica?

Resposta:

Em referência à energia em causa, usa-se quer «energia hídrica» quer «energia hidráulica» (ver também o Lextec, um projeto alojado nas páginas do Instituto Camões). É difícil distinguir o termo mais correto, porque os adjetivos em questão, hídrico, «relativo à agua», e hidráulico, «que é movimentado pela água», acabam por significar o mesmo quando associados à palavra energia: «energia hídrica» = «energia de origem hídrica»; «energia hidráulica» = «energia relativa à movimentação da água».

N. E. – O consulente José Calvo (Lisboa) entendeu enviar o seguinte esclarecimento, que agradecemos e que permite completar o conteúdo da resposta: «Em relação à pergunta de José Carapinha, se por um lado as expressões se podem considerar equivalentes, por outro lado o termo hidráulico é muito utilizado na óleo-hidráulica, para descrever qualquer fluido com características adequadas, pelo que na organização onde trabalho optámos por utilizar o termo hídrico, quando queremos referir-nos a processos envolvendo apenas a água como fluido, e hidráulico, quando nos referimos a outros fluidos. Pode-se contrapor que óleo-hidráulico seria mais correto, mas desta forma utilizamos palavras específicas para cada um.» [embora "oleoidráulico" seja forma possível, mantive-se a grafia usada pelo consulente, que se afigura aceitável, se se considerar óleo- como elemento prefixal]

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem se a palavra incendiarismo existe em português e qual é o seu significado.

Obrigado pela atenção.

Resposta:

Trata-se de palavra legítima, embora seja recente, o que explica que não tenha ainda registo no dicionário. Embora pareça ter proveniência espanhola, justifica-se o seu uso, por permitir encarar o fogo posto como prática criminosa, assim se distinguindo da patologia que pode estar associada, ou seja, a piromania.

(1) «Dos casos investigados pela Polícia Florestal desde o início do ano e até ao final de junho, no Ribatejo, detetaram-se cinco casos de fogo posto (incendiarismo) que foram remetidos para o Ministério Público» (jornal O Mirante).

(2) «No resumo da determinação das causas dos incêndios florestais registados o ano passado, elaborado pelo Corpo Nacional da Guarda Florestal, o 'incendiarismo' aparece em primeiro lugar da tabela, sendo responsável por quase um terço (32 por cento) dos fogos» (jornal Correio da Manhã).

(3) «Como conclusões principais deste projeto, ressaltam as seguintes causas principais por cada concelho: Arcos de Valdevez – negligência (queimadas de resíduos agrícolas, de matos, para renovação de pastagens e para caça e pesca) e incendiarismo (gestão de baldios e vinganças) [...]» (relatório final de projeto CIES-ISCTE/DGRF).

Pergunta:

Sei que o Acordo Ortográfico determina que os elementos de composição por prefixação, como mini-, super- ou hiper-, devem unir-se ao segundo elemento sem hífen, salvo nas exceções previstas.

No entanto, segundo vários dicionários, esses mesmos elementos podem ter a função de adjetivos, passando a ser grafados com acento e separados do substantivo que precedem, como por exemplo míni ou súper.

O que distingue ambas as utilizações? No primeiro caso não funcionam também por vezes como adjetivos? Será legítimo escrever tanto "superestilo" como «súper estilo»? "Minibola" e "míni bola"? E porque não «super sónico» e «mini bola» (sem acento)? Ou teria de ser «estilo súper/super» ou «bola míni/mini»?

Agradeço desde já a vossa ajuda e felicito-vos pelo vosso excelente trabalho.

Resposta:

Precedendo substantivos comuns ou adjetivos, as formas super-, mini-, super- são geralmente usadas como prefixos: supermercado, hipermercado, minimercado; supersónico, hiperativo (falta aqui um derivado adjetival formado com mini, que não consegui achar atestado). Contudo, observa-se que os dicionários os registam como substantivos, adjetivos e até como advérbios (cf. Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, na Infopédia; Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; e Vocabulário Ortográfico do Português): super- torna-se súper, classificado como advérbio, adjetivo e substantivo (neste caso, como redução de supermercado); híper figura como substantivo (redução de hipermercado)1; e míni aparece quer como adjetivo quer como substantivo (neste caso, pode designar um tipo de garrafa de cerveja muito popular em Portugal).

Estes factos poderiam legitimar sequências como «míni bola», mas é de recomendar que, antepostos a adjetivos e substantivos, os prefixos em causa se mantenham como tal e se liguem graficamente à palavra que modificam. Noutras situações – pospostos e...

Pergunta:

Há dias deparei-me com esta frase:

«Atestando a sua importância, alguns anos mais tarde, Simenon veio a ser editado numa coleção autónoma, Romances policiais de Georges Simenon, cujo número de estreia foi o romance O cão amarelo, traduzido por Adolfo Casais Monteiro, publicado previsivelmente em 1939 pela Empresa Nacional de Publicidade.»

O «previsivelmente» foi corrigido para «provavelmente». Porém, não deixei de admitir alguma plausibilidade semântica àquele «previsivelmente». Já que «previvelmente» é «o que se pode prever», e «prever» é, não só «antecipar», mas também «supor» ou «conjeturar». E, sendo assim, aquele «previsivelmente» estaria lá por «de acordo com o que se pode prever/conjeturar». Ou seja:

«[...] cujo número de estreia foi o romance O cão amarelo, traduzido por Adolfo Casais Monteiro, publicado, de acordo com o que [hoje] se pode prever/conjeturar, em 1939 pela Empresa Nacional de Publicidade.»

Gostaria, a este respeito, de obter a vossa opinião.

Obrigado.

Resposta:

Previsivelmente deriva de previsível, e não diretamente de prever, o que permite sugerir que previsível tenha uma semântica mais restrita que prever e apenas signifique «o que se pode prever» ou «aquilo com que se pode contar antecipadamente», sem abranger as aceções de «supor» ou «conjeturar», correspondentes a menor grau de certeza. Note-se, aliás, que os adjetivos sufixados com -vel não têm de herdar a semântica dos verbos correspondentes e até podem dela afastar-se; por exemplo, provável e provavelmente não mantêm a semântica de provar.

No exemplo em questão, é fácil depreender que o advérbio previsivelmente está a ser usado como provavelmente e talvez, ou seja, como advérbio modal, isto é, como marcador da crença do locutor no conteúdo de uma frase. A estrutura em que ocorre – «publicado previsivelmente em 1939» – é uma oração reduzida participial que pode ser parafraseada assim: «que provavelmente foi publicado em 1939»; ou assim: «que talvez tenha sido publicado em 1939». No entanto, não é esse, até agora, o significado que se associa a previsivelmente, pelo menos, no contexto do padrão linguístico de Portugal e mesmo de outros países de língua portuguesa.

Refira-se que os advérbios modais têm mobilidade na frase («que foi publicado provavelmente/talvez em 1939»), e, tendo em conta a sequência «talvez em 1939», com o advérbio a preceder um constituinte, podem até focalizar constituintes frásicos.