Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sobre a função sintática de demasiado em «a Ana é demasiado rápida», [dizem-me que é] modificador do adjetivo, [o que] tem lógica, mas as gramáticas e manuais que utilizo não contemplam a função sintática de modificador do adjetivo.

Existe o modificador do adjetivo?

Resposta:

O Dicionário Terminológico (DT) não inclui termos como «modificador do grupo adjetival» ou «modificador do adjetivo», o que sugere que não se aceita tal função sintática. Assim, em relação a «demasiado rápida»:

a) ou consideramos que «demasiado rápida» é uma forma analítica da flexão em grau do adjetivo, enquadrando-a no domínio da morfologia, sem lhe atribuir função sintática especial;

b) ou, seguindo a Gramática do Português (GP) da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 1364), classificamos demasiado como um especificador adverbial (este termo não faz parte do DT), conforme se define na seguinte descrição (sublinho demasiado):

«[...] [O] sintagma adjetival pode conter especificadores adverbiais [...].

Os especificadores do adjetivo ocorrem à sua esquerda, sendo geralmente advérbios ou locuções adverbiais que se podem agrupar em duas subclasses [...]:

*advérbios e locuções adverbiais com valor quantificacional, geralmente associados à expressão de grau dos adjetivos: bastante, completamente, demasiado, duplamente, excessivamente, extraordinariamente, ligeiramente, menos, muito, nada, pouco, «um pouco», «um tanto»:

(5) a. Fui ouvir um advogado [muito famoso].
        b. O Luís comprou um livro [bastante raro].
        c. Tenho um aluno [nada tolo].
        d. O tanque está [completamente cheio].
     &#x...

Pergunta:

Constou-me que seria de evitar a expressão «qualquer outro». Exemplifico com a seguinte frase: «João é bom rapaz, tal como qualquer outro.» A fundamentação veiculada vai no sentido de não ser necessária a combinação das duas palavras para se obter o mesmo significado. Tratar-se-ia, segundo o opinante em causa, de expressão exagerada e empolada. Quid juris?

Muito obrigado.

Resposta:

A sequência «qualquer outro» é equivalente a «outro qualquer», expressão que se encontra registada em dicionário: «"outro qualquer" quem quer que seja, seja lá qual for. Ex.: não admitia ser confundido com outro qualquer» (Dicionário Houaiss, subentrada de outro). Estando «outro qualquer» aceite, parece-me, portanto, legítimo o uso de «qualquer outro».

Assinalo, porém, o comentário que «qualquer outro» já mereceu no passado, por exemplo, por parte de Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958): «Qualquer. Qualquer outro. Há puristas que acoimam a expressão de galicismo. Parece-nos que, usada com moderação, não apresenta inconveniente de maior [...].» Ou seja, se reservas existiram quanto à correção de «qualquer outro», parece que tal posição não reuniu consenso entre os gramáticos normativistas.

Pergunta:

Gostaria de saber se é legítimo utilizar a palavra cante para referir o designado «cante alentejano», em vez de canto ou cantares. Hoje, numa aula onde estive, várias pessoas foram contra aquela designação que consideram uma corruptela de canto, apenas devido à fonética da língua, naquela região – Alentejo, que pronuncia geralmente como terminando em "-te", as palavras que se escrevem com terminação em -to.

Muito obrigada desde já.

Resposta:

A forma cante tornou-se legítima no âmbito da norma-padrão pelo uso que lhe tem sido dado, o qual a levou a especializar-se como designação exclusiva desse canto que é típico de uma região – o Alentejo. O uso de regionalismos lexicais, morfológicos e fonéticos é aceitável em situações em que é necessário denominar uma realidade ou forma cultural circunscritas a certos territórios. Por exemplo, emprega-se a forma balho, e não baile, para referir certas festas populares do Alentejo e dos Açores, muito embora balho derive de balhar, variante não só arcaica mas também popular e regional de bailar.

 

[Nota do consultor (atualização em 21/01/2019) – Sobre a etimologia de cante, é este, já foi dito, um regionalismo que se especializou como denominação de um género musical da cultura tradicional alentejana. Mas, procurando levar um pouco mais longe a discussão das origens desta forma, poderá supor-se ter ela surgido como deturpação de canto, aparecida no contexto de uma cultura oral pouco ou nada letrada; no entanto, não se julgue que se trata de distorção comparável à adaptação popular de empréstimos provenientes de línguas estrangeiras. Na verdade, é possível enquadrar cante na fonologia dos dialetos centro-meridonais portugueses e na história do contacto dos dialetos meridionais românicos (o chamado "moçárabe") com os dialetos árabes e até berberes que se falaram na metade sul da Península Ibérica entre os século VIII e XIII (na região de Granada até mais tarde). A este respeito, a literatura tem apontado a tendência de os falares românicos do sul peninsular perderem o

Pergunta:

Sempre vejo escrita a expressão «ano de», como na frase: «As inscrições para o ano de 2015 estarão abertas no próximo mês.» No entanto, o uso do de nesse contexto me causa muita estranheza. Está correto esse uso? Com base em que regra gramatical? Não seria melhor escrever a mesma frase da seguinte maneira: «As inscrições para o ano 2015 estarão abertas no próximo mês»?

Obrigada.

Resposta:

Sobre a estrutura em questão, não sei de doutrina normativa que a condene. Trata-se de uma construção que inclui a preposição de e tem muito uso, sendo alternativa a «o ano 2015», sem preposição. A estrutura é aceitável e parece-me relacionar-se com as de casos como «a cidade do Rio de Janeiro», «o estado de S. Paulo», «a província do Minho». Note-se, além disso, que a construção «ano de X» é bastante antiga, já se encontrando atestada em textos do século XVI:

1.  «[...] foi el-Rei, que então estava em Lisboa, um domingo, oito dias de Março, do ano de mil e quinhentos, com toda a Corte ouvir missa a Nossa Senhora de Belém [...]» (João de Barros, Décadas da Ásia, Livros I-X, no Corpus do Português).

Pergunta:

Pedia a escansão dos versos «Quem ora soubesse/ onde o amor nace/ que o semeasse». Nos versos apresentados há encontros vocálicos no 2.º e 3.º versos.

Obrigada.

Resposta:

Estamos perante o mote de uma cantiga de Luís de Camões constituída por versos de cinco sílabas, também conhecidos por pentassílabos ou redondilha menor.

Proponho a seguinte escansão:

Quem/ o/ra/ sou/be/sse
on/de o/ A/mor/ na/ce
que/ o/ se/me/a/sse

O terceiro verso levanta alguns problemas, se aceitarmos que se encontram em hiato os elementos de dois encontros vocálicos (em «que o» e «semeasse»). Que «semeasse» deve ter vogais em hiato, fica comprovado por outros versos da cantiga (Cf. Luís de Camões, Rimas, edição de A. J. Costa Pimpão, 1973, p. 88), onde também ocorre o verbo semear: «semeava amor», «o que semeasse», «se semeei grão». Nestes versos, a sequência ea é sempre interpretada como hiato ("e-a"), o que possibilita contar cinco sílabas em cada caso.

Já mais difícil se torna encontrar apoio mais objetivo para o hiato que sugiro para a sequência «que o», porque ao longo da cantiga há versos em que os encontros vocálicos intervocabulares são resolvidos como uma única sílaba resultante de elisão ou sinalefa: «em/ for/t(e) ho/ra/ na/ce» (elisão); «on/de o/ A/mor/ na/ce» (sinalefa). Contudo, é possível evitar a elisão de «que o» no terceiro verso do mote, atendendo a outros casos de licença poética, aos quais se permite por vezes a criação de ...