« (...) A palavra apanhou remeteu-me logo para corrupção. Apanha-se alguém a roubar, a mentir, a fugir... E fui ler o artigo. (…) Questiono-me, então: em que é que [António] Costa foi "apanhado"? A governar?! (…) Não será antes demagogia ou sensacionalismo? (...)»
«Com o título “Presidente do Supremo valida uma escuta que apanhou Costa no caso do hidrogénio”, o Público publicou uma notícia, na edição de 23 de Janeiro de 2021, que originou protestos de sete leitores.
«Enquanto professora de Português», escreve a leitora Teresa Cardoso Valente, «sempre tive a preocupação de transmitir aos jovens a necessidade de rigor na utilização das palavras e na análise da adequação dos títulos aos respectivos conteúdos linguísticos. (…) Para meu espanto, (…) encontro um título, "Presidente do Supremo valida uma escuta que apanhou Costa no caso do hidrogénio". A palavra apanhou remeteu-me logo para corrupção. Apanha-se alguém a roubar, a mentir, a fugir... E fui ler o artigo. (…) Questiono-me, então: em que é que Costa foi "apanhado"? A governar?! (…) Não será antes demagogia ou sensacionalismo?»
Um outro leitor, Octávio Senos Miranda, manifesta igual perplexidade. «A notícia começa assim: "O primeiro-ministro, António Costa, foi apanhado...". "Apanhou"? "Foi apanhado"? Costa andava fugido? Costa estava a ser escutado? Não seria melhor escrever: em escutas efectuadas ao ministro do Ambiente foram detectadas conversas com Costa? Claro que a minha visão não introduz "sangue"…»
No mesmo sentido abona a leitora Maria Helena Cabral, de Carcavelos: «A utilização do verbo apanhar no título (…), assim como a primeira frase da notícia, "O primeiro-ministro, António Costa, foi apanhado em três conversas...", sugerem crime ou pelo menos delito, ou suspeita deles, o que não é justificado no texto. É pois uma escolha de palavra não isenta, que se pode considerar querer insinuar acusação. Podia-se ter escolhido "... uma escuta de conversa de Costa" e "... foi ouvido em três conversas" ou... Deixo à capacidade da jornalista que escreve no Público (eu não sou jornalista) outras possibilidades com menos conotações suspeitas de má intenção.»
O leitor Alberto Arons de Carvalho estrutura o seu protesto à volta do que considera serem três erros. «O primeiro é o próprio título, com chamada na primeira página, o que acentua a sua gravidade. A utilização da palavra apanha induz qualquer leitor a concluir que o primeiro-ministro cometeu qualquer ato ilegal, detectado por esta escuta telefónica. A palavra apanha não é, neste contexto, neutra. (…) O que foi publicado na primeira página, bem como na página 20, condena desde já António Costa…»
A afirmação «O Público sabe que as três escutas analisadas são "recentes"» constitui, de acordo com o leitor, um segundo erro. «Bem sei que a expressão "o Público sabe" não é mais do que a repetição de um jargão que se tornou nos últimos anos lamentavelmente comum no jornalismo português.» No entanto, afirma o leitor, o jornalista tem a obrigação deontológica de «divulgar a sua fonte de informação ou, caso exista com essa fonte um compromisso que impeça o jornalista de o fazer, divulgar esse facto e contextualizar genericamente a origem da notícia». Essa obrigação consta, refere o leitor, «no Livro de Estilo do Público [uma inultrapassável referência para todo o sector…], página 32: “Uma informação deve ser atribuída à fonte de origem, identificada com a maior precisão possível (…)." O jornalista deve bater-se sempre por esse nível de identificação.»
O terceiro erro apontado pelo leitor prende-se com a revelação do «teor de conversas privadas entre o primeiro-ministro e o ministro do Ambiente que nada têm a ver com o processo em causa (…), o que representa uma inaceitável violação do direito à intimidade da vida privada. É verdade que aquilo que é revelado é inócuo, mas o exemplo de desrespeito por esse direito está longe de o ser…».
É também a revelação de um excerto dessa conversa privada que origina o protesto do leitor André Sota. Diz ele: «A jornalista escreve no artigo que "O primeiro-ministro queixa-se do isolamento profiláctico, que durou entre 16 e 29 de Dezembro, disponibilizando-se o ministro do Ambiente para lhe levar ao Palácio de São Bento um livro". Fico espantado! Onde é que está a notícia? (…) Isto é só uma conversa privada! Depois (os jornalistas) queixam-se que o Ministério Público os manda vigiar!”»
Encaminhei estes emails para a jornalista Mariana Oliveira, que aqui expõe as suas razões. Elas seriam mais pertinentes se o PÚBLICO fosse um jornal especializado em matérias do Direito e não o jornal generalista que é. «(…) A minha intenção com o "apanhou" foi dar a ideia que a ligação de António Costa a este caso foi fortuita, já que não era o primeiro-ministro o alvo da escuta. Essa questão é relevante, porque se fosse o primeiro-ministro o alvo da escuta esta tinha que ser autorizada e não apenas validada pelo presidente do Supremo. Confesso que não pensei nas restantes interpretações que o verbo poderia ter, mas admito que a leitura que os leitores fizeram também seja legítima. Não era essa a minha intenção. No artigo acho que fica tudo muito claro, porque não há limites de palavras como nos títulos. Só posso comprometer-me a, numa próxima vez, ter mais cuidado.»
O provedor considera que neste caso estão em causa duas coisas distintas: o título do artigo e parte do seu conteúdo. Comecemos pelo conteúdo.
A jornalista produz afirmações baseadas em escutas telefónicas que estão num processo ainda em segredo de justiça. O provedor entende que não se coloca aqui o problema da violação desse segredo. Esse é um direito que assiste ao jornalista, designadamente à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, quando está em causa um episódio de manifesto “interesse público”. É disso que se trata no que se refere à troca de impressões entre o primeiro-ministro e o ministro do Ambiente a propósito de um projecto que implica um grande investimento publico.
Mas será também assim quando a jornalista divulga uma parte privada da conversa sobre o estado de espírito de António Costa durante o confinamento, ou sobre a consequente proposta de Matos Fernandes lhe levar um livro? Não é. E haverá nessa mesma conversa algum ilícito ou indício da prática ou da preparação de um crime ou de uma manobra política ilegítima? Não há. Tem então essa parte da conversa um manifesto interesse público ou noticioso? Não tem.
Quanto ao título do artigo, «Presidente do Supremo valida uma escuta que apanhou Costa no caso do hidrogénio», ele é infeliz porque se presta a múltiplas interpretações. É certo que os títulos devem ser um convite à leitura, mas eles não podem exagerar nem contrariar o conteúdo da notícia. Ora o verbo apanhar, no presente contexto, lança a suspeita e pode revestir um tom acusatório, e presta-se a uma primeira leitura que não só contradita o que está escrito no artigo como induz o leitor em erro. É um título especulativo, que peca por falta de rigor.
Assim, o provedor estima que o PÚBLICO errou e que a jornalista Mariana Oliveira ignorou o ponto 10 do Código Deontológico dos Jornalistas (O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos excepto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende), bem como, no que respeita às relações com as fontes, o ponto 68 dos Princípios e Normas de Conduta Profissional definidos no Livro de Estilo do PÚBLICO.
Artigo saído no Público em 30 de janeiro de 2021, escrito segundo a norma ortográfica de 1945.