«Nós, Rei de Portugal pela graça de Deus, fazemos saber que…» Era assim que, na Idade Média, os monarcas se dirigiam à Nação. A voz do rei era a única com legitimidade para usar da palavra em nome de todos. Daí que o uso da primeira pessoa do plural (nós) para dizer eu tenha recebido a designação de plural majestático. Este nós majestático tinha também o correlativo vós: «Vós, Senhor…»
Na mensagem de Natal do primeiro-ministro, nós tem uma referência muito instável. Considerando as acções aí listadas em relatório, temos nós para dizer o Governo («lançámos pela primeira vez políticas de apoio aos jovens casais»; «esforço que fizemos para desenvolver uma nova geração de políticas sociais»); temos nós para referir União Europeia («E terminámos a nossa presidência celebrando o melhor da Europa: abolindo as fronteiras internas a leste») e temos nós para dizer eu, José Sócrates.
De facto, assim é, pois só a uma pessoa, na sua individualidade, podem ser atribuídas crenças («Temos agora boas razões para acreditar»), sonhos ( «A Europa fica assim como sempre a sonhámos») ou ambições («Nós temos a ambição de ser um país competitivo»). Deixamos mesmo de ter qualquer dúvida quando chegamos à passagem do discurso em que nós é sujeito de um predicado que descreve o próprio acto dizer o que se está a dizer: «Podemos dizer com orgulho que deixamos uma Europa mais forte», ou seja: Eu digo, eu estou a dizer, com orgulho: eu deixo uma Europa mais forte.
"Plural majestático", portanto. Agora, o que é irónico é que este "falso" plural é também designado nos prontuários por "plural de modéstia" — o que prova que nem a terminologia gramatical é imune a manipulações ideológicas.
Artigo publicado no semanário Sol de 29 de Dezembro de 2007, na coluna Ver como Se Diz