Da importância e das consequências da troca de tempos verbais — um artigo de Ana Martins no Sol.
É frequente ser necessário afirmar uma coisa de que não se tem a certeza absoluta, seja por distanciamento, temporal ou físico, em relação aos factos, seja por necessidade de formular uma hipótese, seja ainda porque se está apenas a reproduzir o que foi dito por outro. Quando assim é, o falante tem várias maneiras de marcar essa atitude de incerteza relativamente àquilo que diz. Uma dessas maneiras está no recurso a um tempo verbal, o futuro do indicativo.
Ao contrário do que vem descrito nas gramáticas e nos manuais escolares, o futuro raramente expressa o tempo posterior ao «agora» da enunciação. É antes um recurso para dizer que a situação em referência é apenas uma possibilidade ou probabilidade: «Haverá pessoas que acreditam num milagre económico, mas eu não conheço nenhuma.»
Em contrapartida, quando se quer dizer que a acção é dada como certa, entra em cena o presente. Afinal, também este tempo verbal não cabe na descrição que dele aprendemos na escola: é que o presente quase nunca exprime a acção a acontecer no «agora em que digo isto». Quando o presente capta uma acção futura, é porque sobre a ocorrência dessa acção não há dúvidas: «Para o mês que vem, baixam as taxas de juro.»
Mas vejamos estas duas passagens na imprensa desta semana:
«Mário Soares: Maioria absoluta PS evita que país fique "ingovernável"» (Sol, 13/01/09). Pela leitura da notícia percebemos, afinal, que, no estrito pensamento de Mário Soares, a maioria absoluta evitará/evitaria/poderia evitar qualquer coisa. O verbo «evitar» nunca poderia estar na forma de presente.
«Este ano de 2008 terá o menor défice orçamental da democracia portuguesa» (declaração de José Sócrates na Assembleia da República do passado dia 14, reproduzida, ipsis verbis, em quase todos os órgãos de comunicação social). Ora, o défice de 2008 corresponde a um valor verificado e não a um valor programado. Diz-se que o défice de 2008 é X e que o défice de 2009 será Y (possivelmente, de 3,9%).
Dar o certo por incerto e vice-versa é o truque mais elementar para gerar desinformação — a que alguns preferem chamar, simplesmente, mentira.
Artigo publicado no semanário Sol de 24 de Janeiro de 2009, na coluna Ver como Se Diz.