Antigamente a ortografia era para respeitar. Porquê? Ninguém perguntava. Com a chegada da modernidade, também a ortografia se despiu de dogmatismos e apareceu explicada: é importante atender à forma escrita de uma palavra, porque aí se regista o seu código genético. Recentemente, a ortografia foi considerada um obstáculo metodológico para a aferição da competência da leitura nas provas do 1.º e do 2.º ciclos do ensino básico — 2007. Mais recentemente, Gonçalo M. Tavares, autor do romance Jerusalém, com que conquistou na semana passada o Prémio Portugal Telecom, opinou: «A ortografia não é o mais importante. O mais importante é ter orgulho em falar português.» (Reuters/Sol, 17/10/07).
Avança a ideia de que, no que toca à expressão escrita, o que importa é o investimento no conteúdo, na estruturação e na pertinência daquilo que se diz, e não tanto em questões de forma. Levanta-se o argumento de que a ortografia não abrange todos os aspectos formais da escrita.
Mas, então, o que nos diz, por exemplo, uma pessoa que escreve "fatricida" (em vez de fratricida)? Que não conhece a origem latina da palavra (frater, fratris). E aquele que escreve "apartir" e "concerteza"? Que não sabe segmentar palavras em português. E o que escreve "acelarar"? Que desconhece que a grafia não é tradução da fonia. E o que troca percussão por precursão? Que tem um vocabulário reduzido. Ou seja, quem desconhece a ortografia desconhece, em grande parte, a estrutura da sua língua materna em diferentes domínios. Está bom de ver o quão pernicioso é ensinar sobre o pressuposto de que o aluno pode produzir uma excelente reflexão por escrito com uma grafia inventada na hora.
Estejamos, porém, alerta: não menos estragos fazem os que se escandalizam, criminalizam e escarnecem dos que cometem um erro ortográfico. Um exemplo: no Brasil, o Tribunal Regional do Trabalho de Campinas negou, por unanimidade, o recurso de um trabalhador porque a petição tinha um "erro": "infrajornada" (Última Instância, Brasil, 19/10/07).
Artigo publicado no semanário Sol de 20 de Outubro de 2007, na coluna Ver como Se Diz